Quem já viu a programação do Fazendo Gênero sabe muito bem que são várias atividades acontecendo ao mesmo tempo e é impossível acompanhar tudo o que acontece por lá. Por isso, acho importante deixar aqui um resumo do que acompanhei nas discussões sobre violência contra mulheres, pois pode dar uma ideia do ponto onde estamos, e ser um bom ponto de partida para outros debates.
Antes mesmo da abertura oficial, houve uma reunião para apresentar um projeto da Fiocruz coordenado pela Elizabeth Fleury e pela Stela Meneghel: Dicionário feminino da infâmia: diagnóstico e acolhimento de mulheres em situação de violência, que visa orientar profissionais da área de saúde em relação à violência contra mulheres. Fiquei tão interessada no projeto que, ao voltar a Belo Horizonte, candidatei-me ao processo seletivo para obter uma bolsa e participar do projeto como pesquisadora. Hoje recebi a ótima notícia de que fui aprovada no processo seletivo e participarei da elaboração do dicionário 😀
Mesa sobre feminicídio
A mesa que mais me chamou a atenção foi a de feminicídio. Primeiro, porque ou as palestrantes eram estrangeiras, ou discutiam apenas autoras estrangeiras; conceituar feminicídio no Brasil é um passo urgente a ser dado. Fiquei bastante chateada ao descobrir que o sistema de proteção às mulheres vítimas de violência no Brasil é um horror, perdendo fortemente para o do México (antes que critiquem, saibam que Teresa Lisboa fez um trabalho muito sério comparando os sistemas de proteção dos dois países). Foi feita também uma crítica às tentativas de glamurizar a violência contra mulheres, como várias empresas de moda e cosméticos vêm fazendo (a Denise já fez diversos posts excelentes sobre o tema). Foi citado o absurdo caso da MAC, que fez uma coleção explorando e banalizando o horror da violência contra mulheres em Ciudad Juarez.
Já conhecia alguns artigos da Rita Segato e mesmo assim ela me surpreendeu com uma das melhores palestras que já vi, e que se encaixou com tudo o que venho estudando nos últimos anos. Fazendo uma síntese grosseira, que não faz jus a todo o raciocínio que Rita Segato desenvolveu, ela afirmou que a lei é um sistema de crenças que só faz efeito se puder convencer as pessoas a obedecê-la. A lei discute setores da sociedade e sua capacidade de se inscrever na lei. E a luta pelo direito não é para mudar a sociedade, mas para mostrar quem tem poder, quem conseguiu inscrever seu nome e suas causas nas “tábuas da lei”. Ou seja, trata-se de uma guerra de dominação.
Por isso, e aqui são minhas observações, quando exigimos cumprimento da Lei Maria da Penha, quando exigimos que a violência contra mulheres seja considerada de caráter público (e não privado, como os “donos da lei” querem nos fazer crer), quando insistimos na legalização do aborto e na efetivação da igualdade jurídica em todos os aspectos estamos brigando para que o poder constituído reconheça as mulheres como um setor da sociedade que merece ter seus direitos reconhecidos, instituídos e respeitados e efetivados.
Mesa sobre Memórias do Feminismo
Outra mesa que acho interessante destacar foi sobre “Memórias do Feminismo”. A palestra da Sônia Malheiros Miguel, da Secretaria de Políticas para Mulheres me impressionou ao apresentar vídeos feitos na década de 80. De repente, entendi que houve uma época em que causas feministas eram discutidas em vinhetas de televisão e havia incentivo para as mulheres pressionarem a Assembleia Constituinte para que a nova Constituição inscrevesse direitos das mulheres. Que diferença para hoje, quando temos de debater feminismo em blogs porque não há espaço na mídia tradicional para essas questões!
Nesta mesma mesa redonda, adorei a Eva Blay sendo enfática ao criticar quem reclama que leis não funcionam: para ela, isso faz parte da democracia, e é necessário haver pressão social e política para que as leis funcionem. Notem que, mesmo partindo de pontos diferentes, há muito em comum entre as falas de Eva Blay e Rita Segato.
Dora Barrancos apresentou um histórico do feminismo argentino e algumas questões recentes e bem interessantes, como os cursos sobre igualdade de gênero que ela leciona no Ministério da Defesa argentino (uma área tradicionalmente masculina tem umA ministrA). Ela contou que fala para os alunos (militares de alta patente inclusive) que “não há homem suficientemente progressista em matéria de direitos das mulheres”, e considera que tanto militares quanto universitários são bastante lentos na hora de reconhecer e modificar situações de discriminação. Dora não se incomoda com pessoas que agem como feministas, embora recusem-se a serem chamadas de feministas; para ela, o perigo é abrir mão das reivindicações feministas, e não exatamente do nome em si (esta é uma situação recorrente nas discussões da blogosfera; particularmente, eu acho que se reconhecer feminista é importante, sim)
Simpósio Temático sobre Feminicídio
Apresentei um trabalho sobre o caso Eloá no Simpósio Temático sobre Feminicidio y violencia de género. Uma coisa interessante que aconteceu foi que, de tod@s @s participantes do dia, estávamos quatro representantes de Minas Gerais: Helcira, Adélcio, Margarita e eu. À medida que conversávamos com outras pessoas e assistíamos às apresentações, percebíamos que a situação de violência contra mulheres em Minas Gerais é mais grave que em outras regiões. A Sandra Azevêdo, da UFCG, mostrou como as organizações de mulheres na Paraíba conseguiram se mobilizar e pautar a mídia em dois casos de assassinatos de mulheres. E nós, de Minas, ficamos lamentando que aqui esses casos são pouco noticiados e, quando o são, acabam por merecer poucas linhas e/ou colocar a culpa na vítima.
Mesa sobre Violência de Gênero
A mesa sobre Violência de Gênero foi bastante interessante. Muitas informações novas, e bastante assustadoras, reforçando as impressões da mesa sobre feminicídio em relação à pouca proteção que as mulheres desfrutam no Brasil. Cecília Sardenberg apontou duas situações que considerei sérias. Uma é a dificuldade que as pessoas, inclusive mulheres vítimas de violência, têm em diferenciar “proteção da família” e “proteção da mulher”, e com isso acabam por aceitar violência em nome da família (já escrevi sobre isso neste post). Outra questão é a dificuldade que profissionais de segurança pública têm em reconhecer a violência contra mulheres como crime, chegando ao ponto de afirmar absurdos do tipo “estou acostumado a mexer com vagabundo, não com pai de família” para se esquivar de aplicar a Lei Maria da Penha.
Parry Scott fez uma apresentação bem interessante, mostrando questões de mobilidade aplicadas a situações rurais e urbanas, e como influenciam na vida e na violência sofrida pelas mulheres. E destacou: “mobilidade incomoda. Temos uma cultura que procura restringir a mobilidade da mulher“.
Como já escrevi antes, e fui incentivada pela professora Neuma Aguiar a comentar na Mesa sobre violência de gênero, as faculdades de Direito passam longe das discussões de gênero, formando profissionais extremamente despreparados para lidar com essas questões. É necessário proporcionar formação com ênfase em questões mais práticas, não só para policiais (que tem sido o público mais frequente dos cursos) mas também de juízes, promotores e advogados. Pelo que tenho acompanhado, o grande problema hoje é fazer com que esses profissionais consigam reconhecer em situações práticas a teoria que lhes foi ensinada, procurando respeitar e efetivar os direitos das mulheres.
Uma esperança de mudanças muito bem-vinda foi quando Mônica Ovinski de Camargo, professora em Criciúma, me contou que conseguiu inscrever no currículo de uma faculdade a disciplina optativa “Direitos Humanos das Mulheres“.
Observação final: cadê o povo do Direito?
Obviamente, o Fazendo Gênero, mesmo pra mim, não se resumiu aos pontos listados neste post. E espero que em 2012 a gente consiga pelo menos organizar um Simpósio Temático para reunir pesquisadores da área jurídica, como estive conversando com o Daniel Caye e diversas outras pessoas da área jurídica. O que percebemos é que estávamos espalhados por diversos simpósios, e não conseguimos nos reunir o suficiente para analisar a situação específica de nossa área de atuação. Espero que consertemos esse obstáculo e ampliemos as discussões sobre gênero e direito no Fazendo Gênero 10.
Bom dia, eu estive em algumas dessas mesas que você citou. Nesse ano eu apresentei poster, porque era da graduação. E o meu tema também foi feminicídio no Norte de Minas Gerais. Concordo com você que “as faculdades de Direito passam longe das discussões de gênero”, aqui temos essa mesma realidade. Mas na História, há um Grupo de Pesquisa Gênero e Violência (GV).