Em 1999, a Assembleia Geral da ONU declarou que 25 de novembro passava a ser o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra Mulheres. Outras datas relacionadas aos direitos humanos estão bem próximas, como o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), o Dia Mundial de Combate à Aids (1º de dezembro), o Dia Nacional da Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra Mulheres (6 de dezembro, marcado pela Campanha do Laço Branco) e o Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro).
Nessa época, organizações de direitos humanos, inclusive feministas, se unem para evidenciar que a pessoa destinatária de campanhas de direitos humanos não é um homem médio universal e genérico. O desrespeito atinge mulheres, que têm seus direitos humanos constantemente violados, especialmente à medida que a ele se somam outras discriminações, como racial, étnica, por idade ou orientação sexual.
Talvez o direito das mulheres mais violado é o de uma vida livre de violência doméstica. A violência cometida por maridos e parentes é muito frequente, e apesar da pressão dos movimentos feministas, ainda há muito para se melhorar nessa área. Infelizmente, pesquisas e divulgação de informações sobre sua incidência, histórico, e até sobre o funcionamento do Estado de Direito ainda são poucas e atrasam o processo de entender e combater a violência contra as mulheres.
Violência por meio do ius corrigendi
Durante séculos, as mulheres foram excluídas de direitos e da vida política. Não eram cidadãs e estavam submetidas ao poder masculino (fosse do pai ou do marido). Um dos efeitos desse poder estava no instituto do ius corrigendi (direito de corrigir): o pai ou marido tinha o direito de agredi-la fisicamente para corrigir seus hábitos ou forçá-la a obedecer a suas ordens.
No Brasil, ainda que esse instituto não faça parte da legislação criminal desde meados do século XIX, foi preservado ao longo do tempo pelo direito civil (que concedia a chefia do casal ao marido até a Constituição de 1988), e ainda é aceito pelos costumes a ponto de ter sido necessário promulgar a Lei Maria da Penha em 2006. Essa lei procura coibir a violência doméstica e familiar contra mulheres, reconhecendo que elas são sujeitos de direito e não podem ser vítimas do ius corrigendi.
Embora sempre pensemos na agressão feita pelo cônjuge (inclusive em relações lésbicas), são tão comuns os casos de violência contra mulheres praticados por pai, mãe, avós, sogros e irmãos que a Lei Maria da Penha (art. 5º, II) prevê punição para qualquer pessoa que agrida, física ou psicologicamente, uma mulher de seu círculo familiar.
Violência não é um ato de amor
Quando uma mulher é espancada por algum parente ou companheiro, é comum se ouvir algo do tipo “ele/ela fez isso para corrigi-la, afinal, só quer o bem dela” ou “alguma coisa ela fez para merecer essa punição”.
É comum associar a violência física ao amor e ao cuidado, e não vê-la como realmente é: uma relação abusiva, marcada por agressões que humilham física e psicologicamente a pessoa agredida, colocando-a em posição hierarquicamente inferior a quem agride e destruindo sua subjetividade. Isso terá impacto em sua vida: se pessoas ligadas ao núcleo familiar, que deveriam gostar dela e ampará-la nos problemas, agem por meio da agressividade e da humilhação, o que esperar de quem não faz parte da família? A insegurança gerada pelas agressões também é agravada por outros fatores, como o racismo e a pobreza, interferindo na autoimagem da pessoa e em suas relações sociais.
Nos casos em que a violência contra mulheres termina em morte, é comum que a mídia se refira ao caso como crime passional. Porém, não existe crime passional. O que se tem é um agressor que age como dono da mulher e a mata porque ela não está obedecendo à sua vontade. O ius corrigendi, aqui, vai ao extremo de matar quem se recusa a obedecer.
Deve-se lembrar aqui do dito feminista dos anos 1970: “Quem ama não mata”. Quem ama não exige obediência, não agride, não usa de violência. Quem ama vê a pessoa amada como alguém igual a si, com as mesmas liberdades e direitos.
Quem agride comete crime
Se há agressão, há inquérito policial para verificar quem é o agressor. E se essa pessoa acusada é julgada e condenada por agredir alguém, isso significa que cometeu um crime e terá de cumprir sua pena.
Porém, há uma tentativa frequente de minimizar e invisibilizar os casos de violência contra mulheres, evitando a todo custo que se reconheça que o agressor cometeu um crime. Há quem diga que “um fato lamentável que aconteceu a Fulano”, como se o problema fosse Fulano ser punido, em vez de lamentar que Fulano tenha cometido um crime.
Não são poucas as mulheres que ouvem das autoridades: “tem certeza que quer continuar a processar o pai de seus filhos?” e insinuam que o processo traumatizará as crianças. Policiais evitam registrar os casos e dizem que “foram treinados para lidar com criminosos, não com pais de família”, como se a agressão feita por parentes não fosse crime. E há juízes que se recusam a aplicar a Lei Maria da Penha por considerá-la prejudicial para a estabilidade da família.
Ao negar o direito da mulher de denunciar a agressão, o sistema que originou o ius corrigendi se mantém: a mulher é tratada como subordinada ao homem e se torna uma cidadã de segunda classe, com menos direitos do que o homem e que seus filhos. Preservar a família, nessas horas, é um inadequado sinônimo para tolerância com a violência contra mulheres.
O acusado de agressão não é um monstro
Um equívoco bastante comum é considerar que o agressor é um monstro que deve ser encarcerado até morrer de inanição. Essa percepção é absurda, violando garantias constitucionais e os princípios mais básicos do Estado Democrático de Direito. A parte mais revolucionária da Lei Maria da Penha está no artigo 35, ao prever centros de educação e de reabilitação para os agressores, tratando-os como pessoas em vez de estigmatizá-los como monstros. Aprendendo a tratar mulheres como iguais, agressores param de utilizar a agressão em suas relações sociais, rompendo o ciclo de violência.
Por mais que o crime cause revolta nas pessoas próximas, ou por mais que a mídia sensacionalista incentive, não se deve prejulgar o agressor, linchá-lo ou criar obstáculos para sua vida. Ao fim do processo, o acusado tanto pode ser condenado quanto absolvido, dependendo das provas que estão nos autos. Há também o risco de acontecer o crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal), quando a pessoa se passa por vítima, faz uma acusação que sabe que é falsa e dá início a um procedimento de investigação policial e processo criminal. Nesse caso, o processo se inverte, e o acusado se torna vítima. Essas possibilidades realmente existem, portanto não é um exagero afirmar que não se deve prejulgar o acusado.
Quem é acusado de agressão tem o direito de ser julgado e condenado de acordo com a legislação vigente. E isso não cabe à mídia, mas ao Estado, por meio de um processo judicial. O sensacionalismo midiático atropela o devido processo legal, condena sem provas e destrói vidas. Isso acontece não só com homens acusados de violência doméstica ou de matar suas parceiras, mas também com mulheres acusadas de matar seus maridos ou abandonar seus filhos.
Quem agride não é um monstro: é uma pessoa. Tem direitos que devem ser respeitados. E, em casos de acusação criminal, há princípios bem específicos a serem seguidos, como o da presunção de inocência e o direito de responder o processo em liberdade. A prisão, no processo criminal, é medida de exceção, quando se comprova que a pessoa desrespeita ordens judiciais ou atrapalha o andamento do processo. É necessário lembrar que esses direitos valem para qualquer pessoa, inclusive para quem é acusado de praticar violência contra mulheres.
Infelizmente há vários problemas nesse sistema. Agentes de segurança nem sempre estão preparados para lidar com os casos de violência e acabam inibindo ou prejudicando as vítimas. O Judiciário é lento, e muitas vezes nega sem razão ou atrasa medidas protetivas fundamentais para a proteção das vítimas. Porém, a solução está em exigir que o Estado cumpra efetivamente a lei, e não em ignorar todos os direitos e garantias fundamentais.
Combatendo a violência
Para combater a violência contra mulheres, é necessário principalmente que se respeite o Estado Democrático de Direito. Os direitos das mulheres só existem porque grupos feministas se articulam de acordo com as leis do Estado para reivindicar que as mulheres tenham acesso aos mesmos direitos e privilégios que os homens. A contrapartida está em respeitar os direitos fundamentais e o devido processo legal, e pressionar para que o Estado atue em favor das mulheres em vez de tratá-las como cidadãs de segunda classe.
Na fase atual, isso significa reforçar a aplicação da Lei Maria da Penha em dois eixos de atuação: punição e prevenção. A punição criminal é importante para reconhecer a mulher como vítima de crimes, corrigindo a distorção histórica causada pelo ius corrigendi. E, mais importante, a prevenção ocorre ao amparar vítimas e por meio da educação dos agressores. Não são vítimas eternas nem criminosos irrecuperáveis. São pessoas que merecem mais do que esses rótulos, recebendo apoio psicológico do Estado para quebrarem o ciclo de violência.
Por fim, é necessário mudar a mentalidade das pessoas para que não aceitem mais a violência como forma de constranger alguém a mudar seus hábitos. Também é importante entender que não se pode descontar frustrações por meio da agressão, e depois tentar se justificar dizendo que é amor, educação ou outra desculpa. Isso envolve muita reflexão, autocontrole e a capacidade de considerar as mulheres como seres humanos e sujeitos de direito.
Artigo publicado originalmente na edição impressa nº116 (novembro de 2012) da Revista Fórum.
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