A Revista de Estudos Feministas fez uma homenagem a Heloneida Studart. Destaco um trecho da entrevista de Heloneida, contando como se tornou feminista:
Acho que comecei a ser feminista quando eu tinha uns seis anos no Ceará, e a minha família ia passar as férias no interior, na praia. Ao passarmos por um botequim, eu vi na parede um cartaz que até hoje não me sai dos olhos, onde estava escrito: “Mulher aqui só diz três coisas: ‘Entra, menino’, ‘Xô, galinha’, e ‘Sim, senhor'”. Esse “Sim, senhor” me marcou profundamente. Eu era uma menina filha de uma família que só tinha irmãos homens, fiquei muito balançada com aquilo e achei, embora fosse apenas uma criança, que era um absurdo que o destino de uma mulher fosse dizer “Sim, senhor”. Depois, crescendo em uma família muito tradicional, muito conservadora, a família do Barão de Studart, eu vi que as mulheres viviam sempre uma frase – “Mulher não tem querer” – e que todas as mulheres eram preparadas para se tornarem esposas aos 18 anos, aos 17, sem irem para a faculdade, sem trabalharem fora, e passando do governo do pai para o governo do marido. Então, aos 12 anos, eu já tinha decidido que esse não seria o meu destino, e eu dizia isso seguido nas rodas da família, e as pessoas ficavam bastante escandalizadas, bastante chocadas. Quando eu tinha 16 anos fui para o interior, de carona, e arranjei uma certidão de idade aumentada para 21 anos…
Sabe quando é que eu descobri que não era igual às outras meninas? Nas festas de Natal da minha família. A regra era: homens não faziam nada e mulheres arrumavam a mesa, cozinhavam e depois lavavam a louça. Eu, pré-adolescente, não queria lavar a louça, mas na minha cabeça ficava que era “preguiça” minha. Mas aí eu comecei a questionar: por que os caras não fazem nada? Aí minhas tias argumentavam: eles fazem alguma coisa sim, eles arrastam as mesas, puxam as cadeiras. E eu retrucava: então eu quero arrastar a mesa e meu irmão ou meus primos que lavem a louça. Aí acontecia que eu não lavava a louça, meus primos também não e minhas tias faziam tudo. Esse foi um dos pequenos mal-estares que me deixou azeda com a família durante a adolescência. Mas eu não tinha consciência que o problema não era DELES. Eu não estava questionando minha família em especial, mas a organização deles como um todo. E deu no que deu 🙂
Esses dias eu discuti no blog da Lu, porque ela disse que pra ser feminista era necessário conhecer teoria feminista. Não acho que seja preciso teoria. Não sei ao certo quando me tornei feminista, mas desde que aprendi a ler e escrever, lá pelos 7 anos, meus cadernos estão cheios de questionamentos. Eu sei que eu lia a revista americana Ms, ou via as fotos, já que naquela época eu não falava inglês. É estranho, porque minha mãe não trabalhava fora, e tudo lá em casa girava em torno do meu pai (não no sentido de mandar, mas de fazer as coisas). Então realmente não sei por que me tornei feminista. Eu via meu pai dizendo pro meu irmão “Cuide de suas irmãs”, mas isso foi muito mais tarde, já na adolescência, e isso não era tão machista quanto parece (era mais uma forma de dar algum poder ao meu irmão, filho do meio). Sei que aos 13 anos eu virei muito católica. Estudava em escola católica e queria ser freira. Mas eu me dividia, e mesmo sendo muito religiosa não conseguia superar algumas coisas. Eu perguntava pras freiras: por que Deus é Ele, Senhor, Pai, enfim, masculino? Isso de Adão e Eva é pra ser levado a sério MESMO? Eva veio da costela de Adão? E o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e a mulher veio depois, pra fazer companhia ao homem? Que bizarro! E que negócio é esse que só padre pode rezar missa? Sabe, eu queria ser freira, mas mantinha alguma ambição. Se era pra me dedicar à vida religiosa, eu queria ser Papa, pô! Esse meu lado feminista guerreou demais com o lado religioso, e o feminismo ganhou. Até hoje acho incompatível ser muito religiosa e ser feminista (admiro as mulheres que conseguem).
Enfim, eu adoraria colocar um post no meu blog falando das minhas origens feministas, e perguntando às leitoras quando elas notaram que eram feministas. Mas fico com medo de receber respostas como “Não sou feminista, sou feminina”. Porque desde que me declarei feminista (aos 9 anos, acho), ouço mulheres dizendo “Não, imagina, eu não sou feminista! Deus me livre!”. Por que tanta vergonha em declarar ser a favor de direitos iguais pra homens e mulheres?
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Como é possível, em pleno 2008, ainda existir esse tipo de pensamento tacanho? O pior é que existe, e é mais freqüente do que imaginamos. Cabe a nos mudarmos isso, e pode começar dentro de casa mesmo. A minha sorte é que la em casa, existia uma escala. Cada dia era um que lavava a louça, e nessa escala tinha todo mundo, inclusive meu pai e meu irmão.
Nada a ver com o post, mas quero dizer que estou contente por o blog ter voltado das férias!