A revista Trip publicou uma crônica de Henrique Goldman, na qual ele conta como, junto com um colega de escola, assediou e forçou Luisa, empregada em sua casa, a fazer sexo com eles. No final da crônica, ele esperava que ela, após 32 anos, conseguisse rir (!) da situação. A identificação do autor, ao final, dizia que, “tornou-se mais jeitosinho com as mulheres ao longo dos anos”.

O texto gerou tanta repercussão negativa que incluíram no site uma resposta aos leitores feita pela editoria da Trip, alterando a descrição do autor (retiraram o “jeitosinho”), afirmando que o texto é ficcional e que repudiam a violência contra mulheres. O autor também se manifestou, pedindo desculpas pelo transtorno causado aos editores da Trip, reforçando que não é capaz de cometer crimes (hahaha, conta essa pra outro/a, todo mundo já cometeu pelo menos um crime!), e esclarecendo que o texto é ficcional.

Não me interessa se o texto é ficcional, ou não. Ele é repulsivo, seja qual for o ângulo adotado. É nítido o abuso de poder e o desrespeito em relação à vontade de Luisa. A identificação do autor é ofensiva, pois faz parecer que é “natural” que homens – ou pelo menos os leitores da Trip – iniciem a vida sexual assediando empregadas, e melhorem suas habilidades sexuais com o passar dos anos, como se a questão fosse o desempenho sexual deles, e não a violência. Além de divulgar o mito do desejo sexual “incontrolável” como verdade, é óbvio que o problema está no desrespeito à vontade da mulher. Desempenho sexual, aqui, serve apenas para encobrir a violência. Sugerir que ela dê risada do episódio é minimizá-lo, banalizando a violência cometida.

Vi muitos comentários sobre a questão criminal, e tenho de discordar da maioria deles. Uma coisa é a percepção leiga da nossa legislação criminal, e outra é o juridiquês, ou seja, a interpretação técnica do que é considerado crime. Bem que eu gostaria que essas percepções fossem mais aproximadas, mas ainda não o são. Discordo da definição de vários crimes contra a liberdade sexual (em parte porque são extremamente focados em ereção e penetração, ignorando a violação da vontade da mulher), mas aqui optei por seguir a doutrina tradicional.

A situação, da forma descrita pelo autor, se ocorresse hoje, se enquadraria no crime de assédio sexual, e não no de estupro. Primeiro, porque deriva diretamente de uma relação de poder, afinal Luisa era a empregada da casa e estava subordinada hierarquicamente a Henrique. Segundo, porque Luisa “cedeu” às investidas, fazendo sexo com os rapazes, e a resistência à violência é necessária para a caracterização do crime de estupro. Quanto dessa resistência é necessária? Sinto dizer, mas isso depende do machismo de quem julga, afinal, o direito é masculino [pdf], e o que acaba valendo é a lábia para descaracterizar o crime e evitar a condenação dos homens.

Parece que, para os homens, a crônica é a história de uma iniciação sexual vergonhosa, mas “normal”. Riram da violência, e fizeram piada sobre ela. Não é tecnicamente uma apologia (pois não elogia nem defende o assédio, muito pelo contrário), mas é uma banalização e descaso com uma situação de violência vivida por uma mulher. A Lola escreveu maravilhosamente bem sobre essa questão dos homens “risonhos”, e o quanto a falta de empatia e o deboche são ofensivos.

Li alguns comentários na linha “mas ele era menor de idade e ela o seduziu”, o que se trata de um absurdo completo. Primeiro, porque estamos partindo do que o autor falou, e ele deixou bem claro que não houve sedução de nenhuma das partes; muito pelo contrário, ele e um amigo forçaram a empregada a ter relações sexuais. Segundo, porque sabe-se muito bem que o nosso passado escravocrata influenciava, até recentemente, a estrutura doméstica, na qual se concebia que a empregada morasse no local de trabalho e, muitas vezes, iniciasse sexualmente os homens da casa. A partir de uma estrutura social dessas, como falar de sedução, a não ser em fantasias masculinas? Para a mulher, não ter direito de escolha é uma violência e uma humilhação, por mais que o rapaz seja lindo. Terceiro, faz parte da nossa cultura a idéia de valorizar a situação de um adolescente que recebe atenção ou tem relações sexuais com uma mulher mais velha. Tanto isso acontece que frequentemente vejo comentários criticando os estadunidenses por punirem professoras que tiveram relações com alunos, interpretando essa relação como magnífica para a vida sexual do aluno e não como um abuso de poder; se pensam assim, então que não mudem o discurso procurando inocentar quem afirmou que forçou a empregada a manter relações sexuais.

O que me surpreendeu mesmo foi uma revista publicar um relato de violência sexual e endossá-lo ao descrever o autor como alguém que se tornou mais “jeitosinho” com as mulheres. Se fosse um relato do ladrão que levou sua bolsa ou carteira com o salário do mês, e ele te sugerisse rir da situação, você riria? Você riria da narrativa de alguém contando como realizou um sequestro-relâmpago? Você pediria para a vítima dessa pessoa relembrar a violência e rir da situação? Você publicaria uma texto autobiográfico do ladrão zombando de sua vítima? Então, por que rir ou endossar uma violência contra uma mulher? Qual a vantagem, qual o ganho social, qual o mérito de publicar um texto com esse teor, especialmente se não houver contextualização ou reprovação direta e enfática da conduta? É lamentável que os editores da Trip não tenham notado que se tornaram coniventes com uma narrativa de violência.

O que podemos fazer? Cartas indignadas para a redação, boicote à revista, reclamações e boicote aos anunciantes da revista. Boicote ao autor e suas obras, até porque ele apenas pediu desculpas pelo transtorno causado aos editores, e sequer se referiu a quem se sentiu ofendido/a pela violência que ele descreveu. Inclusão de matérias combatendo a violência contra as mulheres, para mostrar que atos considerados banais por homens ofendem, e muito, as mulheres. E discutir a situação das empregadas domésticas, afastando de vez o passado escravocrata que as considera como um corpo a ser explorado em todos os sentidos possíveis. O que importa é não compactuar com a violência, encarando-a como “normal” ou aceitável.

Vi na Carla Rodrigues que há uma petição online. Não concordo com todos os termos, mas assinei porque estou de acordo com a ideia principal, que é demonstrar a insatisfação com a publicação de uma crônica ofensiva, que banaliza um crime contra as mulheres.

É uma vantagem enorme ter tanta gente criticando a crônica. Só no site da Trip, já são mais de 700 comentários, a maioria indignada com o que leu. Desconfio que, 32 anos atrás, em uma época em que sequer existia divórcio ou crime de assédio sexual (este é de 2001), pouquíssimas pessoas se manifestariam. No fim das contas, a repercussão negativa do texto é um progresso, pois mais pessoas estão percebendo e se negando a compactuar com a violência contra mulheres.