À medida que as mulheres passaram a obter vitórias políticas, conseguindo a igualdade jurídica, a discriminação foi deslocada para outros campos. E um tema que merece atenção é o da aparência feminina, pois envolve uma mudança no enfoque do corpo da mulher na mídia.
Mulheres ainda são avaliadas primeiro – e principalmente – por sua aparência, e não por suas atitudes e qualidades. Resquício de uma época na qual mulher não podia estudar nem trabalhar, a aparência feminina era fundamental para enfeitar o ambiente e se destacar. Porém, os tempos mudaram e hoje não faz o menor sentido adotar a aparência física como critério principal para a avaliação da vida de uma mulher, e de sua atuação profissional.
Um homem não vai ser considerado menos profissional se for careca, idoso ou andar como um pato. Caso não use as roupas da moda, será visto como excêntrico, não como indigno de confiança profissional. Uma mulher será criticada em toda a sua aparência (peso, roupas, esmalte, batom, rímel, sombra, cor e corte de cabelo, espessura e formato da sobrancelha, sapatos, bolsa, brincos, colares e pulseiras) antes de ser avaliada pelo que tem a dizer. Seu peso e sua aparência são tratados como assuntos públicos, como se ela estivesse o tempo todo precisando primeiro ser aprovada como enfeite, e só depois, segundo o ideal de beleza vigente, pudesse ser avaliada e aprovada como profissional.
Essa desigualdade na abordagem da aparência faz com que as mulheres não tenham a mesma igualdade de oportunidades que os homens. A avaliação é feita por critérios desiguais em razão de gênero, e a necessidade de atender a essa pressão faz com que mulheres sejam fortemente prejudicadas em sua vida social e profissional.
Ideal de beleza ignora a diversidade de corpos
Ao longo do século XX, o padrão de beleza criado a partir das medidas da média das mulheres deu lugar ao ideal de beleza, que valoriza um tipo de corpo bem distante da média da sociedade. Em 1950, uma mulher de 1,60m e 63kg era modelo de beleza; atualmente a modelo tem de ter mais de 1,75m e pesar 50kg ou menos. A modelo de 1950 tinha o corpo parecido com o das mulheres de sua época; a de hoje tem o corpo bem distante da realidade da maioria das mulheres.
O modelo ideal de beleza atual, incentivado pelos meios de comunicação de massa, é extremamente limitador: para ser bonita é necessário ser jovem, extremamente magra, alta e com traços europeizados (pele, cabelos e olhos claros, cabelos lisos). Basta andar na rua para perceber que é raríssimo alguém ter todas essas características – e praticamente impossível tê-las ao mesmo tempo.
Trata-se de um modelo que ignora a diversidade racial e cultural brasileira. É absurdo que, para ficar em um exemplo, cabelos escuros e crespos sejam vistos como inadequados e necessitem ser clareados e alisados para se enquadrar em um ideal de beleza que nega a história das brasileiras. Porém, é esse ideal de beleza altamente excludente e alienante que é tratado como único modelo a ser seguido se as mulheres quiserem obter respeito social e profissional.
Infância direcionada para os cuidados com a aparência
Um dos efeitos da obsessão em obrigar mulheres a ter o corpo perfeito está na pressão exercida durante a infância. Ao invés de brincar ou estudar, as meninas são incentivadas a perseguir um corpo ideal desde tenra idade.
Antes de aprender a ler, meninas já aprenderam a usar batom e a ter medo de engordar. É cada vez mais comum encontrar maquiagem e tintura para cabelos específicos para crianças. Saltos altos, tratamentos estéticos e gestos limitados para não sujar roupas ou borrar a maquiagem já são rotina para muitas meninas. Estudar, ter vida social e tentar ser feliz são valores secundários: o que importa é aprenderem a controlar e alterar o próprio corpo para obter a aparência perfeita.
Durante a puberdade, incapazes de aceitar as mudanças em suas formas e o aumento do grau de gordura corporal, muitas meninas se entregam a dietas de emagrecimento, às vezes até dificultando ou impedindo o processo metabólico natural que levará à menarca. O impacto em suas vidas varia de problemas com autoestima e insatisfação duradoura com seu corpo, passando pelo desenvolvimento de distúrbios alimentares e anorexia, podendo chegar à morte.
Igualdade de gênero, violência e declarações de direitos
A pressão para construir e manter o corpo perfeito resulta em violência física e psicológica. Tentar atingir um modelo inatingível gera angústia, estresse e sensação de inadequação. A pretexto de modificar quem não se enquadra no modelo, estimula-se a zombaria e a agressão, chegando ao ponto de agressão física (como os “rodeios de gordas” na Unesp, no qual universitários perseguiam e agrediam suas colegas que estavam acima do peso considerado ideal).
Além da questão da violência, há também a violação do princípio da igualdade. Não é possível ter igualdade de gênero em um sistema que, desde a tenra idade, força as meninas a se perceberem como fisicamente inadequadas e dificulta a inclusão social feminina. Também há a violação dos princípios de proteção ao desenvolvimento físico e mental das crianças e adolescentes.
Declarações de direitos são fundamentais no combate a todo tipo de discriminação contra mulheres, inclusive quando gera violência psicológica. Dentre as diversas declarações e convenções, destacamos a Convenção de Belém do Pará (1994), dedicada a combater a violência contra mulheres. O artigo 6º declara o direito de a mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação, e o artigo 8º, g, considera dever do Estado incentivar os meios de comunicação a formular diretrizes adequadas de divulgação que contribuam para a erradicação da violência em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher.
Combatendo a discriminação em razão de aparência
O combate às discriminações legitima a atuação do Estado em duas frentes: estímulo a políticas públicas de combate à discriminação e incentivo à introdução de mudanças nas áreas de educação e mídia para modificar as relações de poder que estereotipam e patrocinam comportamentos prejudiciais às mulheres.
O Estado brasileiro vem agindo por meio da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), desenvolvendo atuação específica para questionar e combater os estereótipos sobre mulheres divulgados em anúncios publicitários e programação televisiva. É importante lembrar que o Estado não está censurando nem proibindo, está apenas questionando os valores que são transmitidos pelos meios de comunicação. Ao questionar, propõe mudança de paradigma para que a mídia combata a violência simbólica contra mulheres.
A atuação da SPM, embora louvável e juridicamente correta, ainda é insuficiente. É necessário haver mais envolvimento da sociedade civil e dos demais poderes da República, a exemplo do que ocorre em outros países. Na Suécia, anúncios que exploram o corpo feminino ou que usam mulheres para vender produtos não ligados ao corpo feminino são pichados e sofrem repúdio público. Na Espanha, os desfiles de moda seguem regras para impedir a participação de modelos desnutridas ou jovens demais. Na Inglaterra, anúncios de maquiagem e produtos tidos como rejuvenescedores são retirados de circulação se fica evidente o excesso de manipulação digital da imagem, caracterizando propaganda enganosa.
O Ministério Público de São Paulo tem interferido na indústria da moda com bons resultados. Ao exigir modelos negras nas passarelas e proibir algumas participações (modelos abaixo de 16 anos ou magras demais), abriu espaço para maior diversidade de mulheres nas passarelas.
É necessário ampliar esse tipo de iniciativa para outras áreas. Anúncios publicitários ainda são bastante discriminatórios e o Conar, apesar da pressão da sociedade civil, pouco tem feito para modificar esse quadro. Falta diversidade nas revistas e na televisão: a aparência física da maioria das apresentadoras de telejornais, atrizes e modelos está bem distante da média da população e não representa a diversidade das regiões e dos corpos das mulheres brasileiras.
O descaso com que são recebidas as críticas à falta de diversidade na mídia faz crer que é necessário forçar a implementação de cotas para estimular a diversidade feminina. Também é o caso de efetivamente punir propaganda enganosa ou discriminatória em razão de aparência. Em suma, é necessário agir não só por meio de políticas públicas, mas judicialmente, para impedir que seja incentivado um ideal de beleza excludente que atua para controlar os corpos e restringir a vida das mulheres.
Mulheres são muito mais do que corpos, e corpos são muito mais do que aparência estética. É importante lembrar disso para combater o controle do corpo feminino através da imposição midiática de um modelo estético opressor, que ignora a diversidade e que não contribui para uma vida com mais liberdade para as meninas e mulheres.
Artigo publicado originalmente na edição impressa nº108 (março de 2012) da Revista Fórum