Artigo publicado originalmente na Revista Fórum nº 100, julho de 2011.

Eloá Cristina Pimentel tinha 15 anos quando foi mantida em cárcere privado, sofrendo agressões físicas e psicológicas durante cinco dias, até morrer após ser baleada na cabeça e no púbis. O agressor foi o ex-namorado, que não se conformava com o fim do namoro. A abordagem do caso pela mídia foi extravagante e inadequada: formatado como uma novela televisiva, teve programas sensacionalistas fazendo entrevistas ao vivo com o agressor e diversos especialistas (inclusive advogados e policiais) procuraram justificar a agressão afirmando que se tratava de uma prova de amor, pois o rapaz (tido como sério, trabalhador e vivendo uma crise amorosa) estava se arriscando a destruir sua vida por Eloá. Houve até quem sugerisse que o caso terminasse em reconciliação e casamento. Foram desprezados não só o sigilo e a abordagem não-sexista que deveria envolver o caso, mas principalmente a vontade da agredida, que perdeu a vida porque não desejava mais se relacionar com o agressor.

Este caso, e muitos outros de mesmo teor mas sem a mesma abordagem midiática, poderiam ser vistos como fatalidades isoladas que acometem mulheres. No entanto, estão sendo estudados pela antropologia e por ativistas feministas como feminicídios. Trata-se de uma categoria criada para englobar o que há em comum na agressão e morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, evidenciando o impacto politico de uma desigualdade de gênero. Ou, em outras palavras, procura-se mostrar que mulheres são mortas ou sofrem violência para se adequar ao que determinada sociedade considera que é o papel adequado para mulheres.

Em 1993, Diana Russell e Jill Radford editaram o livro Femicide, que se tornou referência para os estudos de violência de gênero. Marcela Lagarde posteriormente diferenciou os termos femicídio (a morte de mulheres em geral, uma espécie de feminino de homicídio) e feminicídio, referente às mortes de mulheres causadas e legitimadas por um sistema patriarcal e misógino.

Feminicídio é algo que vai além da misoginia, criando um clima de terror que gera a perseguição e morte da mulher a partir de agressões físicas e psicológicas dos mais variados tipos, como abuso físico e verbal, estupro, tortura, escravidão sexual, espancamentos, assédio sexual, mutilação genital e cirurgias ginecológicas desnecessárias, proibição do aborto e da contracepção, cirurgias cosméticas, negação da alimentação, maternidade, heterossexualidade e esterilização forçadas.

Em todos esses casos, o que se tem em comum é o fato de as vítimas serem mulheres, e estarem sendo coagidas a cumprir o papel que aquela sociedade destina a elas. As mulheres que não se adaptam a esse sistema (“desobedientes”, “vadias”, prostitutas, de gênio forte, dentre outros termos afins) perdem o direito à autonomia e à própria vida. As agressões a elas são toleradas, inclusive pelo Estado, suas mortes não são lamentadas e seus agressores não serão punidos; muitas vezes, serão até glorificados. Neste ponto, vale lembrar que houve negociações para que, no primeiro aniversário da morte de Eloá, seu ex-namorado concedesse entrevistas para a televisão.

Na sociedade brasileira, as meninas são treinadas desde a infância em um modelo de feminilidade bastante restrito: devem ser bonitas, sem opiniões fortes, de comportamento (inclusive sexual) discreto quando em público e, em privado, focado em satisfazer o namorado. O prestigio social ocorre através do casamento e, em menor medida, da maternidade, portanto uma mulher que não atenda aos requisitos desse modelo de feminilidade sofrerá pressão para se enquadrar, chegando ao ponto de ser incentivada a sacrificar sua integridade física e psicológica em nome da manutenção do casamento e da família. Nesse tipo de sociedade, os feminicídios ocorrem especialmente em relação à vida familiar e relacionamentos afetivos, principalmente quando a mulher não deseja prosseguir com o relacionamento ou deseja ter vida profissional e financeira independente do marido.

Medo e relações de poder

Pesquisa do Ibope/Instituto Avon indicou que um dos motivos mais fortes que levam uma mulher a não abandonar o agressor é o medo de ser morta se a relação for rompida; esse medo foi mais citado por pessoas de menor poder aquisitivo, menor escolaridade e pessoas mais jovens. Nos processos judiciais estudados por Wânia Izumino, dos 62 casos de lesões corporais sofridas por mulheres, 51 deles foram cometidos por companheiros; dos 13 processos de homicídio e 8 de tentativa de homicídio, só dois casos não foram cometidos por companheiros das vítimas (um deles envolveu mãe e filho, e o outro envolveu tia e sobrinho, evidente o conflito de caráter familiar). Pesquisa da Fundação Perseu Abramo estima que uma mulher é agredida a cada 15 segundos no Brasil, sendo que a maioria é vítima dos companheiros ou ex-companheiros.

Analisando relações de poder ligadas à violência, a professora Rita Segato (UNB) observa dois eixos de atuação, relacionados ao agressor, sua vítima e seus pares. No eixo vertical ela inclui a relação assimétrica entre agressor e vítima (pois ele tem mais poder físico e simbólico que ela), enquanto que no eixo horizontal se encontram as relações entre o agressor e seus pares, uma “irmandade masculina” na qual todos trabalham para manter a simetria de suas relações, mesmo que com isso precisem reforçar a assimetria entre agressor e vítima. Nesse sentido, a sociedade patriarcal age para que a agressão contra mulheres seja minimizada em nome do profissional famoso e respeitável, do bom trabalhador, do pai de família ou do amigo incapaz de agredir um mosquito, sendo que nenhum deles hesita em agredir física ou psicologicamente uma mulher que ele considere que está desobedecendo ao modelo de feminilidade vigente e que, a seus olhos, torna-se merecedora de violência.

Em outros países da América Latina há também muitos feminicídios, notadamente em Ciudad Juárez (México), Guatemala, Honduras e El Salvador. Mas o enfoque é diferente, menos vinculado a relacionamentos afetivos e mais ligado à emancipação feminina e a uma disputa de poder local.
O caso de Ciudad Juárez é emblemático: desde o final do século XX, meninas e mulheres de Ciudad Juárez desaparecem ou são barbaramente violadas, mutiladas e mortas, e o Estado mexicano pouco fez para solucionar os crimes. Em 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou o México culpado por violar o direito a vida, integridade e liberdade pessoal de mulheres violentadas e mortas no Campo Algodonero, Ciudad Juárez, em 2001, caracterizando a primeira condenação de um Estado por feminicídio.

Desde 2007 o México tem a Ley General De Acceso De Las Mujeres A Una Vida Libre De Violencia. Esta lei, assim como a Lei Maria da Penha (2006) no Brasil, demonstra que os Estados reconhecem a desigualdade de gênero que gera violência para mulheres, e toma a iniciativa de combatê-la não só com maior visibilidade e categorias especificas em relação à questão criminal, mas também através de políticas públicas que transformem essas relações, aumentando a autonomia e a integridade física e psicológica das mulheres. Nesse sentido, pesquisa comparativa entre México e Brasil realizada pela professora Teresa Lisboa (UFSC) demonstrou que o sistema de proteção às mulheres vítimas de violência no Brasil é ainda bastante falho e incipiente, especialmente em relação ao modelo mexicano.

A literatura sobre feminicídios é pródiga em casos como o de Eloá, mas sem o tratamento novelístico que o tornou um marco da misoginia no Brasil. A tendência dos meios de comunicação e até de algumas instituições governamentais é não dar destaque ao tema para não questionar os valores misóginos de uma sociedade patriarcal. Assim, a ação é no sentido de diluir esses crimes, considerando-os casos isolados, de caráter privado, indignos de atenção e até mesmo negando que estejam relacionados a gênero (como aconteceu recentemente no Massacre de Realengo, quando um atirador, obcecado com questões sobre virgindade e pureza, invadiu uma escola e escolheu as vítimas, matando 10 meninas e 2 meninos, e as análises sobre o caso silenciaram sobre essa disparidade de gênero).

A discussão sobre feminicídio ainda está se iniciando no Brasil, e há um longo caminho a ser percorrido, a começar pelo reconhecimento de que há desigualdade de gênero a ser combatida com ações direcionadas para mostrar o caráter coletivo desses crimes, evitar seu esquecimento e banalização.

Além de desenvolver a discussão teórica sobre feminicídio, é importante estimular manifestações públicas como a Marcha das Vadias, que questiona os estereótipos sexistas, e as manifestações contra a violência, que buscam reverter casos judiciais fadados ao esquecimento e à impunidade. Todas essas são iniciativas que estimulam as pessoas a identificar e combater a desigualdade de gênero, evitando que suas atitudes sejam responsáveis por patrocinar uma sociedade misógina, negando às mulheres o direito à autonomia.

Artigo publicado originalmente na Revista Fórum nº 100, julho de 2011.