Recentemente fui entrevistada pela revista O Tempo Livre, do grupo do jornal O Tempo, pra comentar sobre o questionamento dos pelos femininos e a tendência de várias mulheres pararem de se depilar. Como a revista tem circulação limitada, posto aqui a íntegra das minhas respostas.
Por que o questionamento do papel da mulher e sua representação na sociedade passa pelos padrões estéticos?
Em nossa sociedade os papeis de gênero são divididos de forma binária e excludente. O que é considerado masculino deve ser bastante diferente do feminino, e essas regras precisam ser seguidas para que as pessoas tenham aceitação social. Para os homens foi reforçado o papel de líder e provedor; para as mulheres, o papel de frágil e esteticamente agradável. Homens podem ser feios, desde que provedores; mulheres devem ser bonitas e submissas. Questionar este modelo, inclusive o que é bonito ou não em determinada época e sociedade, ou se é válido limitar uma pessoa a um papel de gênero (seja ele relacionado à beleza ou ao suporte financeiro) implica em modificar esses valores sociais e propor outras possibilidades menos restritivas de existência.
Por que os pelos, nas mulheres, são motivo de tanto desprezo?
Essa é uma questão bastante recente, na verdade. Um século atrás não havia toda essa preocupação com pelos femininos: aceitava-se que as mulheres, tal como os homens, tinham pelos e que isso não era um problema nem um limitador social. À medida que mulheres passaram a reivindicar direitos e modificar roupas e costumes a pressão para demarcar papeis de gênero aumentou, influenciando também na aceitação dos pelos e de outras características que diferenciassem o masculino do feminino. Ter pelos, nessa perspectiva, tornou-se sinal de virilidade e marcador do masculino; uma mulher que não se depila invade um território marcado como masculino e é constrangida a controlar seu corpo – e seus pelos – para se feminilizar e ser aceita socialmente. O desprezo aos pelos femininos acabou, assim, sendo utilizado para deslocar a atenção da questão dos direitos e forçar mulheres a se adaptarem a pressões estéticas cada vez mais limitadoras de seu cotidiano.
Por que assumir os pelos se tornou um símbolo do feminismo?
O feminismo aponta e questiona os papeis de gênero que limitam a vida das pessoas, especialmente restringindo direitos das mulheres. E, quando se tem uma sociedade que associa mulheres à aparência, as características relacionadas a aparência devem ser questionadas. Foi assim na década de 60, quando o movimento feminista questionou espartilhos e maquiagem, e é assim hoje quando questionamos a obrigação de se depilar para ser considerada mulher. Esta não é a única pauta feminista, mas é bastante conhecida porque ainda se considera que mulheres devem ser julgadas não por suas atitudes e caráter, mas pela sua capacidade de se adequar a padrões estéticos como os modismos depilatórios.
Estar inserido dentro dos padrões estéticos e papéis impostos culturalmente, como o fato de ser depilar e usar salto alto, significa, necessariamente, estar do lado oposto ao feminismo?
Depilar, usar maquiagem, salto alto, roupas justas ou qualquer outra questão relacionada à aparência não é, por si só, nem feminista nem antifeminista. Pode-se encontrar tanto uma mulher feminista que use maquiagem e decotes, quanto uma mulher religiosa, antifeminista, que considera inadequado se depilar, usar roupas coloridas, salto alto ou maquiagem. É importante ressaltar que feminismo é um movimento social que reivindica direitos e oportunidades iguais para mulheres, e uma das formas de fazer isso é expor os mecanismos sociais que restringem direitos com base na aparência das mulheres. Ou seja, é um movimento de luta por direitos, e não uma seita para impor formas “adequadas” de se vestir ou de se comportar – para isso já existem a moda, religião, família, empresa e diversas outras instituições impondo esses comportamentos. Como as pessoas decidem usar os questionamentos feministas, seja para se rebelar, seguir alguns padrões estéticos, ou todos os padrões, é um exercício de sua liberdade e que não deve ser interpretado como feminismo, antifeminismo nem como algo que limite seus direitos.
De que forma a aceitação dos pelos, por parte das mulheres, tem ajudado a sociedade a refletir as representações de gêneros?
Aceitar os próprios pelos, ou brincar com eles, modificando-os, é uma forma de questionar as obrigações sociais atribuídas às mulheres. Ao questionar e optar por fugir dessas obrigações o que se tem é a percepção de que mulheres e homens são livres para decidirem o que fazer com sua aparência, não perdendo direitos por conta disso. Libertam-se desse tipo de pressão e tornam-se mais satisfeitos com seus próprios corpos. Pelos, roupas, corte de cabelo ou maquiagem são acessórios estéticos; não determinam caráter e jamais deveriam ser levados em conta para respeitabilidade social.
Em que medida e de que maneira o nosso corpo se torna ferramenta para expressar aquilo que pensamos e acreditamos?
O corpo é um espaço em disputa. É pelo corpo que nos situamos no mundo, que nos expressamos, que mostramos como somos e o que desejamos, mas o corpo é também espaço de agressão e de limitação. Quanto mais direitos são reivindicados, mais há uma pressão sobre os corpos para se adaptarem a padrões irreais de beleza. Uma das maiores violências é procurar determinar como as pessoas podem – ou não – usar seus corpos. Isso limita suas possibilidades, subordinando-as a papeis de gênero e a limites que nada têm a ver com a liberdade de se aceitar e de tornar seu corpo o que for mais agradável para si mesma. Negar às pessoas a autodeterminação de seus corpos é uma violência que não deve ser tolerada, pois limita a liberdade e as possibilidades de expressão de felicidade de cada pessoa.
Cynthia, também sobre a questão dos pelos femininos, teve toda uma campanha de marketing da Gilette na época em que a moda era vestidos sem mangas, lá no começo do século XX. Os pelos eram vistos como naturais, mas assim que a Gilette viu o mercado inexplorado começou a incentivar a depilação feminina através de acordos com revistas, como a Harpers Bazar.
Dá uma olhada no item 11… http://www.buzzfeed.com/jessicaprobus/18-coisas-que-voce-nunca-soube-que-comecaram-como
<3
Que maravilha ler essa entrevista.
[…] das mulheres, explica, numa entrevista ao jornal brasileiro O Tempo – que podes ver aqui -, o que pode até parecer óbvio, mas nunca é demais compreendermos. Segundo a investigadora, a […]