Outro dia vi num blog uma moça reclamando do feminismo. Ela disse que é ridículo fazer as mulheres serem iguais aos homens, que não há mérito em igualar as mulheres aos absurdos dos homens, como arrotar ou beber cerveja no gargalo. Quer ser frágil e ser tratada como frágil, e acha absurdo que o feminismo tenha acabado com isso.
Não sei o que é mais irritante ao ler isso: se é a falta de informação sobre o que é feminismo (que não acabou com nada da fragilidade, apenas lutou por direitos e proporcionou liberdade e visibilidade para todas as mulheres, sejam elas do tipo “frágil”, ou não), se é a ignorância sobre o próprio corpo (todos os seres humanos arrotam, urinam, defecam, soltam gases, vomitam, etc, e acreditar que, por ser mulher, isso tenha de ser abolido ou ocorrer de forma “delicadinha” é restringir bastante a pessoa em questão, colocando um ideal de “feminino” acima da questão biológica), ou se é a incapacidade de entender que cada pessoa tem a liberdade para ser o que quiser. Se quer ser – ou parecer – frágil, ou agressiva, ou um meio termo, é livre para isso. O que não pode acontecer é se reprimir para seguir a moda ou a pressão da sociedade.
Desprezar o feminismo implica em não aceitar lutas políticas que querem acabar com a idéia de que a mulher não é um ser humano, mas uma escrava a serviço dos homens. Parece uma definição exagerada? Então vamos à situação feminina pré-feminismo. Que tal:
- só poder trabalhar fora de casa se tiver autorização do marido
- só poder estudar o suficiente para saber gerenciar uma casa
- não poder sair de casa sozinha, sob pena de ser considerada impura e adúltera
- seu marido decide onde vocês vão morar, não importa a sua vontade
- não existir igualdade entre homens e mulheres perante a lei. Por isso, a mulher era considerada inferior, menos qualificada que o homem e subordinada legalmente a ele
- não poder votar, isto é, ter voz sobre os destinos políticos e jurídicos do país (inclusive questões sobre direitos das mulheres)
- o marido ter o direito de “corrigir” a esposa à base de pancadas
- não ser considerada vítima de crimes sexuais se não fosse honesta (leia-se virgem ou ostensivamente monogâmica)
- o marido ter o direito de fazer sexo com você quando quiser, a hora que quiser, mesmo que você esteja sem vontade, doente, ou de resguardo. Se mesmo assim você se recusar, ele podia te espancar e os juízes dariam razão a ele
- ser considerada tão incapaz para a vida civil quanto seus filhos menores de idade
- se o casamento não der certo, não ter direito ao divórcio
- os filhos não terem direito a pensão caso o marido a abandone
- não ter direito à guarda dos filhos caso queira se separar
- não poder consumir bebidas alcoólicas, nem fumar, nem comer muito, para não ser considerada vulgar
- seu respeito na sociedade estar ligado ao tamanho da saia e ao uso de maquiagem
- não poder fazer curso superior
- sua área profissional estar limitada a trabalhos manuais e domésticos (só no fim do século dezenove é que as mulheres abriram espaços no magistério infantil)
- se você tiver filhos fora do casamento, ser considerada uma vagabunda que não merece respeito da sociedade e precisa sofrer muito para se redimir
- se você tiver de se submeter à “vergonha” de trabalhar fora de casa, seu salário ser mais baixo que o dos homens, embora sua jornada de trabalho seja maior que a deles
- se você quiser processar alguém, precisar da autorização do marido
- se seu pai ou marido destruir suas coisas ou roubar suas economias, nada acontecerá com ele
Muitas dessas questões foram resolvidas com uma intervenção direta nas leis, através de esforços feministas. Outras só se tornaram visíveis e foram problematizadas graças aos estudos feministas. E algumas até hoje não foram resolvidas.
É claro que temos muita coisa a mudar, ainda. Mas não tem como negar que o feminismo já fez muitas mudanças na sociedade, proporcionando mais direitos, maior liberdade e respeito às mulheres. O problema é que tem gente que prefere associar o feminismo apenas a uma percepção equivocada de “vulgarização” feminina. Enaltecem uma época em que havia um extremo controle sobre o comportamento das mulheres, em detrimento da vontade delas. Feminismo é exatamente o contrário, pois é uma luta por direitos e grande responsável pelo questionamento e liberação desse fardo de controle e desigualdade social. É uma pena que tenha tanta gente que não entende isso e queira, mesmo indiretamente, o retorno a uma vida com menos direitos e mais subordinação das mulheres.
Meu bisavô era poeta, jurista e tradutor. Se não me engano, ele foi um dos que redigiram a lei que permitia o direito ao voto para a mulher. Fiquei sabendo disso depois que meu pai faleceu, ano passado. Minhas avó e tia-avó eram mulheres à frente de seu tempo, mas com empregados e “vida mansa”, fica extremamente fácil a “tal luta”. Hoje penso que todos eles não seriam lá tão meus fãs, já que discordo dos caminhos que o feminismo tomou em certas questões. Por isso, cito sempre Camille Paglia, seja ela considerada “over” ou “démodée” para alguns. Aliás, encontrei vários sites na internet onde esta pensadora contemporânea está muito é viva, e em diversas línguas.
Cynthia, ao contrário dessa pessoa que escreveu sobre “beber no gargalo, blablabla, homem abrir a porta do carro, blablabla”, acho que feminismo não tem nada a ver com isso e sim com o que você escreveu muito bem e enumerou em seu post, mas…. (sempre há poréns, nunca concordo com tudo em gênero , número e grau e também nunca discordo de tudo..) a vida me ensinou certas coisas e meu pensamento raramente “bate com o da maioria das feministas”. Um dia chegaremos a um acordo. ;-))
Aliás, eu até achava que feminismo era o contrário de machismo, pois os dois levam a carga do sufixo “ismo” penso que ser feminista é diferente de entender o feminismo como uma demanda política, uma luta e um processo. E, diga-se de passagem, é eterno, porque o mundo é e sempre será dominado pelo “falus” – isso ao meu ver.. Apesar de toda luta e reclamação, biquinho e caras tristes. 😉
Corrigindo: “contrário-igual”, porque dois extremos sempre se encontram e é o que acho que acontece com um homem machista e uma mulher feminista (eles “se casam” no fim das contas”); a diferença é que pra mim, sem exceção, todos os homens são machistas (nem todos mostram isso descaradamente; vai depender da ocasião, da “oportunidade”), porém, nem todas as mulheres são (e podem) ser feministas. Falo de “poder ser”, porque ser feminista hoje em dia (parece que é fácil mas não é) demanda mais tarefas, digamos, difíceis e complicadasque vão de encontro ao que acontece todos os dias na vida prática.