Este é o segundo de uma série de posts contando um pouco sobre como a divulgação de mentiras sobre feminismo atrapalha a vida de feministas (o primeiro post é sobre o mito de que feministas querem dominar os homens). Não costumo fazer posts falando de minha vida pessoal, mas acho que vale a pena contar um pouco sobre situações que passei pra mostrar que mesmo atitudes banais revelam a ignorância e o preconceito contra feministas, interferindo de forma prejudicial em nosso cotidiano.
Destruindo o mito de que feminista não tem vida pessoal
Antes de sermos feministas, somos seres humanos. Temos vida pessoal, vida sexual, amig@s e relacionamentos afetivos de todos os tipos (e alguns dão certo, outros não). No entanto, a maioria das pessoas prefere ignorar isso, inventando que feministas são eremitas ou mártires isoladas do mundo. Com isso, negam a feministas o direito à autonomia para decidir como devem agir em sua vida privada.
É impressionante a quantidade de gente que acha estranho me encontrar em um buteco, restaurante, shopping ou na seção de limpeza do supermercado. E tem mais um tanto de gente que torce o nariz quando descobre que sou casada ou que eu gosto de cozinhar para amig@s. Há também quem fique de queixo caído ao descobrir que tenho outros interesses que não o feminismo (cozinhar, fazer tricô, montar computadores, jogar Starcraft, só pra citar alguns), como se eu tivesse a obrigação de ser monotemática.
Pra essas pessoas, eu sou alguém que só pode viver sozinha (ou apenas com meus gat@s), sem consumir nada (viver de luz?) e só deveria sair de casa pra ir em manifestações feministas. Bizarro demais… afinal, sou ser humano, tenho que cuidar da minha casa (pois ela ainda não é auto-limpante) e dos meus gat@s, adoro encontrar amig@s, cozinhar ou sair para jantar, me divertir, namorar o marido, e tudo o mais que qualquer pessoa comum faz. Não é porque sou feminista que tenho de viver alheia ao mundo.
Curiosamente, quando essas mesmas pessoas se referem à vida pessoal de homens, as palavras são no estilo “mas eles têm o direito de uma cervejinha, de ver futebol com os amigos”. E aí elencam uma série de atividades lúdicas, que raramente abordam cuidados com a aparência ou limpeza do local onde vivem.
Essas pessoas não percebem que, quando resolvem ditar como deveria ser minha vida pessoal (e é sempre de modo restritivo), estão repercutindo a lógica machista que diz que mulheres devem agir de forma X ou Y (como prescrever determinado tipo de aparência ou atitude) para serem consideradas mulheres. Em contrapartida, caberia às mulheres anularem suas vontades e se submeterem a essas prescrições, nem que para isso precisem abrir mão da vida pessoal: não podem comer ou beber, para não engordar; não podem fazer atividades que descasquem o esmalte; não podem rir alto ou “perder a compostura”… é uma lista de “não pode” interminável. Enquanto isso, os homens estão livres para terem a vida pessoal que desejarem. É impossível haver igualdade entre homens e mulheres nessas condições.
Nas entrelinhas, nota-se que as pessoas estão tão preocupadas com a vida pública que transformam a vida privada das mulheres em um espaço para preparar a imagem pública, e não para ser usufruído. É com base nessas prescrições que mulheres passam a ter a obrigação de gastar sua vida pessoal cuidando da imagem que terão em público, e feministas, por se oporem a esse tipo de interferência e restrição, acabam tendo negado o direito à vida pessoal.
Negar vida pessoal às feministas quando não agimos de acordo com o que se espera da vida pessoal atribuída a todas as mulheres é um reflexo da dificuldade das pessoas em lidar com quem exerce o direito à autonomia e se recusa a viver de acordo com a opinião alheia.
O problema é que essas pessoas que atuam como fiscais da conduta alheia não entendem que estão extrapolando limites: ninguém tem o direito de dizer como uma pessoa – qualquer pessoa, de qualquer orientação ideológica – deve agir em sua vida privada.
Publicado no Blogueiras Feministas em 3 de julho de 2011.
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