A mídia divulga a ideia errada de que o mundo piorou horrores por causa do feminismo. Mesmo quando as alterações podem ser explicadas por meio da economia e da sociedade de consumo acaba sendo mais cômodo inventar que a culpa é do feminismo: essa é uma boa forma de acabar uma discussão sem passar pelos pontos sensíveis, como o trabalho escravo nas fábricas de roupas e o fato de costureiras autônomas receberem pouquíssimo pelas peças produzidas para atender a indústria de fast fashion.
Cabe a nós, feministas, gastarmos parte do nosso tempo resgatando a história do feminismo para mostrar exatamente onde estão as mudanças, e o que o feminismo tem a ver com elas. Já falei antes do mito da lavadora de roupas como emancipação feminina e da relação entre mulheres e trabalhos manuais. E agora vou falar de costura.
Todas as mulheres das gerações antigas sabiam costurar e bordar, pois não era possível comprar roupas prontas sem gastar fortunas. Muitas mulheres sobreviveram (e ainda sobrevivem) de seus trabalhos manuais, seja fazendo roupas para a família, seja vendendo as roupas que criavam. As mais ricas pagavam costureiras (e algumas até tinha costureira particular, que era mais uma das empregadas domésticas). A mudança nesse sistema veio quando lojas começaram a vender roupas industrializadas e baratas, produzidas em massa, usando tecidos impossíveis de serem costurados casa (malha, tecidos elásticos e sintéticos não eram suportados por máquinas de uso doméstico). E aí, o que era chique (ter roupa feita sob medida) virou brega e foi pro ostracismo. A regra, ainda hoje, é comprar roupas prontas (são bem mais baratas) e só ir à costureira pra fazer pequenos ajustes ou consertos. E as costureiras hoje têm de procurar fazer o acabamento ser o mais próximo possível do industrializado.
E por que as mulheres pararam de aprender a costurar?Acho mais fácil explicar por meio de um exemplo pessoal: minha avó foi costureira por um período, e estava bem longe de ser feminista. Ela não ensinou minha mãe a costurar. E minha mãe, que também não é feminista, fez curso de costura antes de se casar, e não me ensinou a costurar.
Quando lamentei com minha avó que eu não sabia costurar, ela me disse que não importava: era preferível que eu gastasse meu tempo estudando pra ter uma profissão com diploma e que me garantisse um bom salário e carteira assinada. Costura (e qualquer trabalho doméstico) podia ser divertido ocasionalmente, mas era profissão cansativa, informal, ruim para a saúde (costurar muitas horas por dia resulta em fortes dores nas costas e problemas de vista), e que não renderia dinheiro nem status igual ao que os estudos poderiam me proporcionar. Ela se tornou costureira porque não teve acesso a nada do que eu estava tendo, e deixou bem claro que, se pudesse escolher, teria optado por estudar e desenvolver outras habilidades melhor remuneradas e com garantias trabalhistas.
Minha avó viveu a transição entre costurar as próprias roupas e comprá-las prontas. Para ela, não valia a pena ensinar algo que estava ultrapassado e que não garantiria, como nas gerações anteriores, uma economia para a família e fonte de renda em emergências. É isso, muito mais do que a recusa em seguir os estereótipos relacionados a atividades femininas, que fez com que as novas gerações não aprendessem a costurar.
Hoje eu estou aprendendo a costurar por conta própria. Herdei uma máquina de costura, pesquisei dicas na internet, comecei fazendo almofadas, e venho criando algumas coisinhas interessantes nas horas vagas. Gosto de ter autonomia para personalizar minhas roupas, fazer pequenos ajustes e inventar peças únicas.
Tenho consciência de que sai mais caro fazer roupas em casa do que comprar prontas, e que o uso que dou para a costura está bem distante da época da minha avó. Pra ela era obrigação para com a família: fazer economia e ter a possibilidade de renda extra. Pra mim não tem a carga de obrigação doméstica que tinha para a geração dela. É uma diversão, apenas. Ou, se algum dia eu quiser profissionalizar a costura, vai ser por escolha pessoal dentre várias alternativas, e não como uma obrigação em relação à economia da minha família.
E onde entra o feminismo nesses pontos de costura?- Questionando o trabalho doméstico antigo, que incluía costura entre as atividades não remuneradas das mulheres
- Questionando a obrigação das mulheres saberem trabalhos manuais para serem consideradas mulheres prendadas (e, portanto, mais cobiçadas no mercado matrimonial, pois seu trabalho não-remunerado em costura geraria ganhos econômicos para a família)
- Questionando a ausência de direitos trabalhistas e as péssimas condições de trabalho das costureiras (uma das histórias que originou o 8 de março se refere a greves e ao incêndio em uma fábrica de roupas), seja trabalhando em fábricas, seja trabalhando em casa enquanto se dividem entre o cuidado com as crianças e a realização de todo o trabalho doméstico
- nas gerações mais novas, fazendo craftivism ao usar os trabalhos manuais como forma de questionar o machismo, empoderar mulheres, estimular o faça-você-mesma, criar personalizações, reciclar peças, incentivar a produção local utilizando materiais ecologicamente corretos.
É muito bom ver artistas das novas gerações criando peças que mesclam feminismo, costura e bordados, como as das imagens deste post (todas elas vendem essas peças em lojas no Etsy; clique nas imagens para acessar as respectivas lojas).
Mas ainda precisamos falar mais sobre a situação precária da maioria das costureiras, e sobre o quanto a costura, por ainda ser vista como atividade informal e predominantemente feminina, não recebe a atenção que merece na hora de organizar cooperativas e discutir direitos trabalhistas. Costumamos falar apenas do glamour da moda, mas nos esquecemos das milhões de costureiras sendo exploradas em nome desse glamour.
Portanto, é importante colocarmos a culpa nos pontos certos. Feministas não foram as responsáveis por diminuir a importância da costura, muito menos por “proibir” (até porque feministas não têm poder para proibir nada) a transmissão de conhecimentos. Feministas são responsáveis, sim, por questionar as motivações em torno das atividades manuais e por criticar a forma como as pessoas fazem vistas grossas para a precariedade do trabalho das costureiras.
Muito bom, Cynthia! É tudo o que eu gostaria de ter escrito. E é importante entender que apreciar e realizar atividades tradicionalmente associadas às mulheres não nos torna menos feministas, e é justamente aí que o feminismo colaborou: temos a opção de escolha e queremos que essas escolhas sejam respeitadas.
Fundamental também apontarmos para a precariedade das relações de trabalho que sustentam a indústria da moda. Assim como no caso das relações com as trabalhadoras domésticas, as conquistas de certos grupos de mulheres não podem ser feitas na base da exploração de outras menos privilegiadas.
Beijos!
Adorei o texto, porque vc sintetizou muito do que penso a respeito dos trabalhos manuais. Muito lindo mesmo.
Fora do assunto, mas o Google Reader morreu? Eu ainda uso…
a parte de rede social morreu. não tem mais como ler os itens compartilhados dos amigos nem comentar. tem como migrar essa interação pro g+, mas é ruim, não gostei mesmo. Pra mim, está morto 🙁
eita, cynthia!
gracias, tá lindo.
beijo