Se há algo que ainda me surpreende é a necessidade humana de crer que seu ponto de vista sobre qualquer assunto é o único certo, e todos os demais são resultado de tolice ou incompreensão. Em boa parte das discussões, sempre há um momento no qual alguém se julga no direito de declarar o que é certo ou errado, e exigir dos outros comportamento compatível com aquilo que acha certo. Não há questionamento, respeito nem tolerância com a opinião alheia, mas apenas desprezo.
Quando o assunto é aborto, essa imposição de convicções fica muito nítida. Religiosos querem impor o seu ponto de vista a TODO o mundo, inclusive a quem não professa aquela religião. Pessoas que puderam escolher e optaram por não abortar acreditam que TODOS devam seguir seu exemplo. Pessoas que nunca passaram por algo parecido com uma gravidez têm idéias prontas sobre o tema e querem impô-las a TODO o mundo. Juízes, longe de se distanciarem de sua religião e discutirem temas polêmicos respeitando os sentimentos dos envolvidos, julgam a TODOS com base em suas opiniões particulares. Políticos, ao invés de respeitarem a pluralidade de crenças e se pautarem por uma conduta laica, oferecem projetos de lei que misturam assuntos de saúde pública com sua formação religiosa, ignorância científica e seus preconceitos mais íntimos, e que valerão para TODOS.
O resultado disso são comentários esdrúxulos, que pouco ou nada respeitam a vida alheia, mas que são enunciados como grandes verdades e ditam as condutas a serem seguidas.
Pessoas que são contra o aborto costumam afirmar que:
- algumas mulheres são promíscuas: é um direito delas, da mesma forma que algumas mulheres deixam os cabelos curtos e outras preferem que eles fiquem compridos.
- o aborto será usado como anticoncepcional: aqui, o TODO é prejudicado pela parte, em uma clara inversão de valores. Não é porque existem ladrões que todas as pessoas devem ficar presas, certo? Então, por que tratar o aborto de forma diferente?
- existem métodos anticoncepcionais dos mais variados tipos: só que nenhum deles é 100% à prova de falhas, ou indicados para todo e qualquer caso
- as dificuldades são superadas pela alegria de ter um filho: esse argumento ignora a falta de vocação maternal e/ou dificuldades de toda ordem
- só as mulheres que já abortaram podem defender o aborto: então apenas homicidas podem defender homicidas, ladrões podem defender ladrões, etc
- determinada religião proíbe o aborto: e daí? Vivemos em um Estado teoricamente laico. É absurdo impor a conduta prescrita por uma religião a quem não tem religião ou professa alguma que é tolerante com o aborto. Favor não confundir o que é “certo” para determinada religião com sua imposição a todo o mundo, inclusive aos que não seguem aquela doutrina
- certas mulheres não sabem ficar de pernas fechadas: esse raciocínio é uma invasão da vida sexual da mulher; ela não deve explicações a ninguém, e, se é pobre – pois esse é o contexto típico desses comentários – tem-se ainda um preconceito que envolve poder aquisitivo, como se só os pobres ou moradores de determinadas regiões não pudessem ter filhos
Recusar o direito ao aborto com base nos argumentos acima, e em outros bastante semelhantes, é impor a todas as mulheres a visão de “certo” baseada apenas no preconceito de algumas pessoas, desrespeitando sua vontade, sua visão de planejamento familiar e de suas vidas.
Essa exacerbação do “estou cert@, vocês estão errados e devem me obedecer”, encampada pelo Estado ao criminalizar o aborto, se reflete nos dados sobre abortos clandestinos, na hipocrisia, no julgamento das outras pessoas sem ao menos tentar entender o que elas estão sentindo ou pensando, na imposição de uma conduta que pode ser adequada a quem julga, mas totalmente inadequada a quem é julgada.
Hoje é o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. Por descriminalização, entenda-se: fazer o aborto deixar de ser assunto de polícia (resultado: prisão) para ser, simplesmente, assunto de saúde pública, envolvendo apoio psicológico, informação adequada sobre contracepção, direito de optar pelo aborto ou pelo prosseguimento da gravidez, direito de fazer um aborto ou parto com toda a segurança e higiene que a medicina pode oferecer. Essa deve ser uma escolha de cada mulher, e não uma imposição estatal, religiosa ou social. Deixemos que a consciência ou a religião de cada gestante diga o que devem fazer. E respeitemos a vontade de cada mulher.
Do contrário, estaremos demonstrando que, no caso da criminalização do aborto, não há interesse no bem-estar dos seres humanos, mas apenas uma imposição de preconceitos pessoais destinada a provar aos demais humanos que a sua opinião é a melhor e deve ser imposta a TODOS.
O dia em que pararmos de impor aos outros, inclusive por meio de leis, pontos de vista que restringem direitos e invadem a vida privada de todas as pessoas será um grande dia. Descriminalizar o aborto é um bom primeiro passo nesse sentido, e um belo exercício de tolerância e respeito à opinião alheia.
Visite também:
links atualizados em 28/09/2006
- Dossiê nº 12: Aborto: mortes preveníveis e evitáveis, da Rede Feminista de Saúde
- Women on waves
- Católicas pelo Direito de Decidir
- Mulher ou sociedade: quem decide sobre o aborto ?
- Congresso recebeu, nesta terça (27/09), projeto pela descriminalização do aborto, no site do Cfemea
- América Latina e Caribe hoje falam de aborto, no site das Mulheres de olho nas eleições
Texto publicado em 28/09/2005 no meu blog antigo, como parte da blogagem coletiva do Nós na Rede. Um ano depois, tanto o meu texto quanto o assunto continuam atuais.
Cynthia, realmente não gosto de falar sobre a questão do aborto. É um assunto complexo e polêmico…
Entendi sobre a descriminalização que vc falou…acho q tem razão…por que tem ser um fato típico?
Tenho um filho e uma bebe na minha barriga(chega em novembro), e de maneira nenhuma faria um aborto…tenho estrutura familiar para tê-los comigo.Mas nessa minha vida de vara da família, vejo tanta criança jogada ao lixo do pior da vida, que penso q não estariam sofrendo nada se um dia não tivessem visto a luz do dia.
Beijinho li