cartaz de uma campanha equivocada da OAB-SPQuando vi o cartaz ao lado, fiquei chocada. Trata-se de uma campanha da OAB-SP para o Dia Internacional da Mulher. Em letras garrafais, fazem a pergunta “Quantas vezes ainda vamos apanhar para aprender?” e, em letras miúdas (não dá pra ler nem na imagem ao lado nem na do site), afirmam: “A violência contra a mulher atinge toda a família. Isso acontece todos os dias. Se você chora em silêncio, apenas piora a situação. Proteja-se. Violência contra a mulher é crise. Ligue 181 e denuncie.

Nossa sociedade tem por hábito insistir na obediência através da agressão, e as mulheres são as principais vítimas disso. Os homens são ensinados desde criancinhas a serem agressivos, não levarem desaforo pra casa nem aceitarem mulheres lhes dando ordens (tanto é que são pouquíssimos os homens que sofrem violência doméstica). Já as mulheres são ensinadas a serem dóceis, conciliadoras e perdoarem agressões pois o/a agressor/a estava fora de si, coitado! (notem que aqui quem agrediu se torna uma vítima), ou então ele/a fez isso para corrigi-la, afinal, só quer o bem dela (o velho argumento da surra como prova de amor). Em parte, essa postura se deve a uma prática que perdurou por muitos séculos, denominada ius corrigendi: o pai ou marido responsável pela mulher poderia agredi-la fisicamente para corrigir seus hábitos. Não só havia previsão legal para essa prática, como também os juízes a consideravam válida e adequada.

Embora sempre pensemos na agressão feita pelo cônjuge, são tão comuns os casos de violência contra mulheres praticados por pai, mãe, avós, sogros e irmãos que a Lei Maria da Penha (art. 5º, II) prevê punição para qualquer pessoa que agrida uma mulher de seu círculo familiar. Colocar a culpa da agressão no álcool, desemprego ou qualquer outro fator é esconder que a violência doméstica como forma de correção ou intimidação das mulheres é prática corriqueira em nossa sociedade. Não se trata de um acontecimento isolado (como os fatores desencadeantes da violência podem fazer crer), mas de uma prática familiar que, ou é aprovada pela sociedade, ou é encoberta para não criar mais “problemas”. Por problemas, entenda-se a necessidade de mudar o paradigma de conduta social para não aceitar mais a violência como forma de educação, nem de obrigar outra pessoa a ter determinado comportamento, e muito menos descontar frustrações através da agressão. Isso envolve muita reflexão, auto-controle e a capacidade de considerar as mulheres como seres humanos e sujeitos de direito, coisas que raramente agressores conseguem compreender.

Explicado isso, voltemos à campanha da OAB-SP. Talvez o objetivo da pergunta no cartaz fosse mostrar que as mulheres também são participantes da violência cometida contra elas ao não denunciarem as agressões. Mas a fatídica pergunta se vale do velho ius corrigendi ao insinuar que as mulheres estão apanhando para aprenderem que precisam denunciar o agressor. Por essa ótica, as mulheres merecem sofrer a violência até terem forças para denunciarem o agressor e darem um basta na relação. Como já disse antes, precisamos abolir essa mentalidade de ius corrigendi, e parar de considerar a surra como uma forma de educação eficaz. É lamentável que uma campanha que pretenda defender os direitos das mulheres apele para uma prática que sempre as vitimou.

A mentalidade da campanha, ao invés de oferecer apoio, e melhorar a estrutura para acolhimento das queixas de violência, está jogando a responsabilidade da denúncia para as mulheres agredidas, que não têm a menor condição de reagir sozinhas. Elas são a parte mais fraca da relação, pois raramente têm apoio da família, dos amigos, da sociedade ou do aparato estatal. Não adianta dizer que há apoio estatal quando não há programas de atendimento psicológico suficientes, nem policiais capacitados para atender aos chamados ou registrar a ocorrência adequadamente, nem juízes preparados para aplicar medidas protetivas. Querer que a mulher, fragilizada e presa no conflito “devo ser dócil e aceitar a violência x devo denunciar e perder tudo o que eu tenho” assuma sozinha todos os riscos, inclusive os prejuízos sociais, que envolvem a denúncia da violência, sem proporcionar o apoio estatal necessário para ampará-la em suas reivindicações, é praticamente condená-la a continuar sofrendo violência, com a agravante de deixá-la mais frágil, isolada e desiludida, pois a solução que lhe faria justiça não se realizou.

Pra piorar, a nota em letras miúdas insinua que a família é mais importante que a mulher ao afirmar que “a violência contra a mulher atinge toda a família.” Enquanto não entenderem que a violência atinge primeiro e principalmente a mulher, não conseguiremos reduzir o número de casos de violência doméstica. À primeira vista, pode parecer uma implicância boba, mas quando juízes optam por absolver um agressor para não prejudicar sua imagem de pai de família, ou policiais deixam de registrar a agressão porque querem o bem e a estabilidade da família, estão fechando os olhos para a violência cometida contra as mulheres e dizendo que manter uma família é mais importante do que preservar a integridade física e psicológica das mulheres.

Fiquei muito decepcionada com esse cartaz. Jamais imaginei que uma entidade com o porte da OAB-SP faria uma campanha que, no fim das contas, legitima o ius corrigendi, joga a culpa pelo silêncio nas mulheres agredidas e ainda minimiza sua dor em prol da família. É triste constatar que ainda falta muito para que os advogados, árduos defensores da cidadania, se lembrarem de que as mulheres também são cidadãs e merecem ser tratadas de forma digna, não através do ius corrigendi.