Estamos tendo em Belo Horizonte um julgamento de grande repercussão. O fato é que uma moça foi acusada de jogar a filha de 2 meses, recém-saída do hospital, na lagoa da Pampulha. A menina foi resgatada, e a mãe foi acusada de tentativa de homicídio.
Não gosto de acompanhar o Tribunal do Júri, em parte porque drama e exageros não me agradam, e o sucesso de um Júri costuma ser proporcional à sua teatralidade. E em parte, não me agrada a sua competência (crimes dolosos – ou seja, intencionais – contra a vida), pois expõe o que tem de pior no ser humano. Essa exposição não ocorre apenas na motivação do crime, mas na forma que tanto a acusação quanto a defesa encontram para sustentar suas teses: desqualificam réu/ré, vítima e testemunhas, distorcem contextos, convocam desafetos para testemunharem, exploram todos os preconceitos possíveis… na prática, o Tribunal do Júri se torna um julgamento da vida dos envolvidos, ao invés de se ater apenas ao crime praticado.
Explicado porque não me agrada o Tribunal do Júri, devo acrescentar que esse caso da lagoa da Pampulha me incomoda muito. O estardalhaço da mídia faz crer que tentar matar um bebê é mais importante e grave do que tentar matar seres humanos adultos ou adolescentes, especialmente se quem comete o crime é uma mulher, e mãe da vítima. Se todos os seres humanos são iguais, por que alguns têm maior valor que outros?
Discuti esse caso em sala de aula ano passado, quando encontraram o bebê. Fiquei chocada ao perceber, por parte dos homens, uma grande dificuldade em exercitar a imaginação e pensar em outros motivos e situações (inclusive a possibilidade de a mãe não ter jogado a criança na lagoa) para o acontecido. Para eles, a mulher é mãe instintivamente e, se não cumpre esse papel, deve ser exemplarmente punida. A maioria foi enfática em elogiar a própria mãe, que fez grandes sacrifícios para criar os filhos e filhas, afirmando ainda que as mulheres que não agem de forma tão abnegada não merecem misericórdia. Tiveram dificuldades para entender que a maternidade envolve um aprendizado, uma relação cultural, e é uma experiência bastante individual. E não lhes ocorreu que essa obrigação de maternidade santificada e instintiva pode gerar grandes dúvidas, distúrbios mentais e emocionais, pela dificuldade de cada mulher se adequar a esse ideal de maternidade.
Posteriormente, observando os comentários nos posts da Carla Rodrigues, notei essa relação também: são os homens os que mais se sentem violados quando uma mãe não age da forma protetora que eles imaginam que deve ser a conduta delas. Para eles, matar ou fazer mal a uma criança, principalmente se é filha/o, é o pior dos crimes. São tão enfáticos e escandalosos para defender essas idéias que as mulheres têm dificuldades em abrir brechas na gritaria e se manifestar sobre o assunto.
Chega a ser irônico ver todo esse zelo masculino sobre a maternidade, enquanto a paternidade é alvo de desprezo. Quantos são os homens que abandonam seus filhos e filhas quando se separam de suas companheiras? Por que eles não são julgados e punidos exemplarmente por esse abandono que, muitas vezes, conduz as crianças à fome, miséria, criminalidade e morte? E quantos são os homens que maltratam e abusam, inclusive sexualmente, de suas crianças? Eles não merecem uma punição exemplar também?
Na verdade, esse julgamento não é para decidir se a acusada tentou matar sua filha. Seu verdadeiro objetivo é julgar toda a vida da moça, e puni-la por tudo o que ela supostamente fez e que é contrário à idéia de maternidade preconizada por homens. É bom lembrar que se trata da imposição de uma idéia de maternidade tão falsa que necessita de “punições exemplares” para amedrontar as mulheres e obrigá-las a se adequarem a esse ideal de mãe.
Para coroar essa abordagem sexista de um processo que deveria ser neutro (pelo menos é o que ensinam em faculdades de Direito), o julgamento é dominado por homens: juiz, promotor, advogado, delegado, cinco dos sete jurados.
Enquanto houver esse padrão desequilibrado de maternidade instintiva e santificada/ paternidade irresponsável, será difícil ter um julgamento que garanta direitos iguais para homens e mulheres, quando o assunto versar indiretamente sobre os papéis sociais de mães e pais, e seus efeitos em suas crias.
Eu fiquei com a mão coçando para postar algumas coisas sobre esse julgamento, acho que só me sentiria à vontade se lesse o processo de capa a capa. O seu raciocínio sobre a sacrossanta maternidade vs. paternidade irresponsável (ou não-paternidade at all, como bem sabemos) foi na mosca.
O mérito dos casos à parte, o fato é que estamos vivendo uma época de grande comprazimento com o massacre público de rés (Suzane, a mãe da mamadeira com cocaína que não tinha cocaína, essa agora…).
Também notei essa proliferação de rés… e às vezes tenho muito medo do futuro…