Nos Estados Unidos, a organização NOW (National Organization for Women) está convocando um Dia de Amar o Seu Corpo (Love Your Body Day), com discussões sobre corpo e autoestima. No twitter, a tag é #lybd. Quem fizer post, por favor coloque o link no Duplamente Venusiana, que será o nosso índice.

Embora eu já tenha escrito muito sobre corpo e auto-estima, inclusive em artigos acadêmicos, ainda me surpreendo como o assunto é delicado, especialmente para as gerações mais novas. Cada vez estamos mais expostas a imagens manipuladas que divulgam apenas um ideal de beleza praticamente irrealizável para 99% das mulheres, e talvez por isso mesmo, a maioria de nós está cada vez menos à vontade com seus corpos, sentindo-se inadequada.

A diversidade é o nosso maior trunfo de beleza, e precisa ser enfatizada e valorizada. Ninguém é igual a ninguém, e são essas diferenças que nos tornam únicas e maravilhosas em cada fase da vida. Envelhecer, ter filhos, cicatrizes, não nos torna feias. Mas, pra compreender isso, é preciso gostar do próprio corpo, da própria história, aprender a conviver e admirar corpos diferentes, e valorizar as histórias de vida que marcaram os corpos.

Nessas horas, sempre me lembro de um artigo da Gloria Steinem (escrito em 1981!) descrevendo a experiência de estar em um spa com outras mulheres, e como isso a fez perceber a diversidade e a beleza dos corpos femininos. Como poucas pessoas conhecem o artigo de Gloria Steinem, vou colocá-lo abaixo, após o link. Vale a leitura!

Celebrando o Corpo Feminino
Autora: Gloria Steinem

Quanto tempo faz desde a última vez que você passou alguns dias na companhia de outras mulheres: tirando e botando a roupa, tomando banho, descansando — aquela união confortável que parece bem mais comum aos vestiários masculinos?

Para mim, o mais perto que cheguei de uma experiência como esta foi na aula de ginástica no científico. Mas isso foi durante os repressivos anos cinqüenta, quando até mesmo as mais ousadas se escondiam por trás de toalhas. Outras de nós sentiam-se tão inseguras em relação às mudanças de nossos corpos adolescentes (ou à falta de mudança) que tomavam banho de calcinha—ou então agüentavam o desconforto das roupas de ginástica úmidas debaixo da roupa só para não terem de se despir.

Acho que já devíamos ser mais adultas e mais abertas quando chegamos à faculdade. Não obstante, para as mulheres o esporte, além de pouco feminino, tornou-se uma coisa antiintelectual. Estas eram duas excelentes desculpas para evitar a maioria das situações de nudez casual entre mulheres. E assim continuávamos a esconder os corpos imperfeitos em que no fundo, acreditávamos, estava todo o nosso valor.

E foi bem tarde que vim a ter uma experiência básica, humana e reconfortante que deveria ter sido comum durante toda a minha vida. Graças a alguns dias passados num spa antiquado, na companhia de umas noventa mulheres, descobri uma consciência simples e visceral, tão crucial quanto a do tipo verbal. Assim como muitas das experiências básicas que uma mulher é encorajada a não ter, esta trouxe força (através da auto-aceitação) e raiva (por que não aprendi isso antes?).

É um truísmo dizer, por exemplo, que pouca roupa causa mais impacto do que nenhuma. Mas no caso específico das mulheres sutiãs, calcinhas, biquínis e outros tipos de roupas são lembretes visuais de uma imagem feminina idealizada e comercial à qual nossos corpos reais e tão variados jamais conseguiriam se adequar. Sem essas referências visuais, o corpo de cada mulher pode ser aceito como é. Deixamos de nos comparar. Começamos a nos aceitar como únicas.

Ninguém comentava tais eventos, é claro. Eles simplesmente aconteciam. Quanto mais horas e dias passávamos juntas, transitando entre vestiário e aula de ginástica ou piscina e sauna, menos lançávamos mão dos pedacinhos de seda ou do elástico dos modelos variados de nossas roupas de baixo. A nudez era aceitável. As malhas de ginástica também. Cobriam o corpo confortavelmente ao invés de cortá-lo em tiras horizontais. Mas aos poucos biquínis minúsculos, anáguas avantajadas, cintas e outra parafernália começaram a desaparecer de nossos corpos e de nossos armários como a roupa de combate de uma guerra que não precisávamos mais lutar.

— Eu sempre gostei de lingerie chique — disse uma mulher. — Mas estou começando a me sentir esquisita nelas.

— Mas é por isso que meu marido gosta de ligas pretas — disse uma mulher saída dos quadros de Rubens. —Justamente porque fica esquisito.

— Vocês já ouviram a história de Judy Holliday? — perguntou uma mulher enquanto despia a malha suada. — Ela foi fazer um teste para um filme e o chefe do estúdio começou a correr atrás dela, em volta da escrivaninha. Então ela simplesmente enfiou a mão dentro do vestido, arrancou o enchimento e disse: “Tome, acho que é isso que o senhor está querendo”.

— Meu Deus — disse uma mulher de seios enormes que, pelos padrões da revista Playboy, deveria se sentir muito satisfeita. — Se eu ao menos pudesse fazer isso!

Aos poucos as cicatrizes de operação de apêndice, as estrias, as cicatrizes de cesariana e coisas do gênero iam causando menos vergonha. Embora eu sempre tivesse me ressentido do sistema de dois pesos e duas medidas antropológico no qual as cicatrizes masculinas são marcas de coragem e experiência, mas as das mulheres são feias, começo a me dar conta de que eu mesma vinha encarando estas feridas com olhos masculinos. Cicatrizes de duelos, cicatrizes de guerra, cicatrizes de violência, cicatrizes tribais de iniciações dolorosas. Estas imagens são, em parte, o motivo pelo qual eu supunha que tais marcas são provas de violência nos homens assim como nas mulheres.

Mas muitas cicatrizes femininas possuem um contexto diferente, e assim uma força emocional própria. Estrias, cicatrizes de cesarianas são muito diferentes das cicatrizes deixadas por acidentes, por guerras e por brigas. Elas evocam coragem sem violência, e mesmo assim é mais provável que provoquem vergonha em quem as tem do que vontade de se vangloriar. Isto dá a elas uma força comovente, nem doce nem amarga. E como caminhar por um cômodo no qual algo de muito emocionante ocorreu.

Há outras cicatrizes cirúrgicas que me assustavam também, embora não fossem tão plenas de significado como as de parto. Quantas mulheres sobrevivem até mesmo ao preço físico da pele esticada além de seus limites? Após uma cesariana, de onde é que as mulheres tiram a coragem para tentar mais uma ou até várias outras?

É verdade que existem sociedades tribais que tratam as mulheres que dão à luz como guerreiros honorários. Mas isso é honrar demais a guerra. Dar à luz é mais digno de admiração do que conquistar alguma coisa, é mais extraordinário do que a autodefesa e exige mais coragem do que ambos. E mesmo assim uma das feministas mais fortes e mais gentis que eu conheço ainda se esconde por trás de um maiô para ocultar as cicatrizes das duas cesarianas que fez. E uma das feministas mais hipócritas que eu conheço (isso, uma dessas que amam o feminismo mas que odeiam as mulheres) fez plástica para remover a minúscula cicatriz que fazia de seu rosto um rosto marcante.

Talvez só consigamos nos sentir à vontade com nós mesmas quando conseguirmos encarar nossas cicatrizes como marcas de experiência. Muitas vezes, são marcas de experiências compartilhadas por outras mulheres, assim passaremos a enxergar nossos corpos como capítulos únicos de uma história compartilhada.

Para tanto, precisamos estar juntas sem constrangimentos. Precisamos da visão constante de realidades diversas para gastar a imagem plástica, perfeita e estereotipada com a qual fomos ensinadas a nos comparar. A meta impossível do “como devemos ser” age como um disco quebrado em nossas mentes. Serão necessárias muitas imagens de uma nova intimidade para deixar-nos surdas aos seus apelos de uma só vez.

Então, de um começo tardio, eu celebro diversas mulheres.

  • Uma alegre setentona de cabelos grisalhos, curtos e cacheados, presos para trás com uma fita laranja, vestia uma malha acetinada verde que envolvia seu abdome avantajado como uma segunda pele. Com ela, eu aprendo a beleza de um ventre que não é liso. Com ela, eu também aprendo que uma bisavó pode tocar os pés com mais flexibilidade do que eu e ainda me deixa sem fôlego numa aula de aeróbica.
  • Uma massagista, pequenina e sólida, de mãos fortes, que sonha em comprar uma mesa para massagens portátil para poder montar um negócio próprio. “A avó do meu namorado sofre muito com artrite, mas eu massageio suas mãos todos os dias para que não doam”, ela me explicou. Ela também tem clientes insones que ela massageia até induzir um sono livre de drogas e clientes com dolorosos nós de tensão que ela relaxa com pressão direta. Concordamos que, se todo mundo fosse bem massageado uma vez por dia, haveria menos guerras no mundo. Com ela, eu aprendo que pode haver uma satisfação de irmã e não subserviência em servir aos corpos de outras mulheres.
  • Duas amigas que não falam coisa alguma além de espanhol. Sua chegada causa um certo mal-estar entre as mulheres do vestiário. Com elas logo aprendemos que a linguagem do corpo e dos gestos é universal.
  • Uma mulher com as formas perfeitas de um ovo que se senta ereta e serenamente, nua, todos os dias, ao sol. Com ela eu aprendo, sem sombra de dúvida, que a única coisa que torna a imagem do Buda crível são as curvas dos seios e do ventre de uma mulher.
  • Uma jovem alta, elegante e linda cujas pernas parecem dependuradas do tronco, tal qual um espantalho, saltita na aula de dança. Mulheres mais velhas e mais gordinhas movimentam-se com uma graça muito maior e, Deus é testemunha, com muito mais ritmo. Com ela eu aprendo que a beleza está impressa na pele, mas o ritmo está impresso na carne.
  • A atendente do vestiário, uma senhora de seus cinqüenta anos e menos de um metro e meio de altura, corre oito quilômetros todos os dias. Ela explica: “Meu marido corria comigo mas parou. O vento frio congelava no pulmão dele.” Temos discutido a necessidade desse spa em oferecer algo como judô ou qualquer outro tipo de aula de autodefesa. Ela concorda. Por quê? Porque foi atacada no estacionamento por um homem de um metro e oitenta que carregava um tijolo na mão. Mesmo assim ela o espantou com táticas de autodefesa que incluíram um belíssimo golpe na virilha. Com ela, eu aprendo que uma mulher pequena pode fazer com um homem o mesmo que uma bala num pote de gelatina.
  • Uma seriíssima diretora de atividades físicas tenta convencer as clientes mais tradicionais de que um corpo em forma vai além da balança e da fita métrica. Como a gerência do spa ainda está convencida de que os homens se internam em busca de forma e saúde e que as mulheres vão em busca de beleza e paparicação, ela sente imenso alívio quando eu reclamo do fato de que os homens fazem testes cardiovasculares e de flexibilidade muscular enquanto as mulheres precisam requerê-los e pagar uma taxa extra. Juntas aprendemos o valor ativista da pressão interna e externa em qualquer que seja o sistema.
  • Uma mãe alta e tranqüila, de cabelos escuros, e sua filha, alta e tranqüila, de cabelos escuros, que conversam a respeito do trabalho que ambas realizam como assistentes sociais. Em grande parte elas parecem ser companheiras em sua necessidade de falar. O corpo de uma mulher deu à luz uma amiga.
  • Uma advogada criminal de personalidade forte e pensamento rápido quer saber como utilizar seus conhecimentos legais para ajudar outras mulheres. Em sua nudez, ela relaxa o bastante para nos brindar com o seguinte epigrama: “A maioria dos homens quer que a esposa tenha um trabalheco.”
  • Uma seriíssima consultora de beleza fazendo limpeza de pele enquanto discursa sobre cirurgia plástica. “Eu já vi todos os tipos possíveis de cicatrizes: implantes nos seios, retirada de papadas, plástica facial, retoques nas pálpebras. Uma mulher que veio para cá fez uma operação de pálpebras tão ruim que não consegue mais fechar os olhos.” Eu espero ouvir algum tipo de ressentimento em relação às mulheres que têm pouca coisa a fazer além de passar o rosto em revista. Ledo engano o meu. “Coitadinhas”, ela diz, continuando, cheia de razão. “Eu não queria estar no lugar delas por todo o dinheiro do mundo.” Mais silêncio. “Mas eu bem que estou pensando em tirar esta papada que eu tenho.”
  • Umas mulheres se encontram na sauna, cada uma imersa na sua própria nuvem de vapor, com seus próprios músculos doloridos e seus próprios pensamentos. Duas recém-chegadas são recebidas com atenção pelas veteranas que já chegaram há um ou dois dias.
    — Comecem no primeiro banco, quanto mais subirem, mais quente fica.
    — Passem gelo na testa.
    — Não fiquem mais de cinco minutos no primeiro dia.
    Juntas, formamos um pequeno mundo de vapor com tamanhos e formatos e cores diferentes: um lugar silencioso no qual nos importamos com o bem-estar de pessoas que mal conhecemos. O vapor que nos envolve parece comunicar nossos pensamentos.
    — E tão bom poder vir para cá sozinha ou com um grupo de mulheres — diz uma voz, vinda das brumas.
    — Sem ter que achar que ficou doida — emenda outra voz.
    — Achei que ia sentir vergonha — diz uma voz jovem. —Eu nunca fiquei assim, com um bando de mulheres, sabe…
    Risadas saem do Buda vaporoso que se encontra num canto.
    — Querida — ela diz —, é pegar ou largar.

Quando volto para casa, com o corpo livre de açúcares, livre de cafeína e relativamente saudável, pergunto a mulheres mais jovens o que sentem diante da nudez de outros corpos femininos. Eu parto do princípio de que esta geração se sentiria mais à vontade com o corpo alheio do que a minha, mas as freqüentadoras mais jovens do spa abalaram as bases dessa minha convicção. De respostas variadas eu constato que, embora ninguém mais tome banho de calcinha, esta forma de conscientização não verbal ainda não faz parte das vidas das mulheres mais jovens.

— Não existe local algum onde possamos estar juntas desta forma — uma aluna do segundo grau diz, pensativa. — Os esportes não nos interessam e eu não conheço ninguém que freqüente uma academia ou uma sauna. Simplesmente não ocorre.

Neste meio tempo duas editoras me lembraram de uma noite num banho turco em Jerusalém, que acabou se transformando num dos pontos altos de um tour feminista por Israel, organizado pela revista Ms. alguns anos atrás. Criou um elo inesperado entre pessoas que não se conheciam, bem no começo da viagem, uma irmandade instantânea. Além da constatação da beleza inerente do corpo feminino. As poucas mulheres ausentes na ocasião sentiram-se levemente excluídas da intimidade do grupo pelo resto da viagem.

Ouvi esta mesma história quando o grupo voltou para casa, mas acho que não ouvi direito. Como tantas experiências pelas quais passamos, é uma experiência mais fácil de ser absorvida do que de ser explicada.

Mas hoje eu sei: sei que gordos ou magros, maduros ou não, nossos corpos não nos deixariam tão desconfortáveis se compreendêssemos o lugar que ocupam no variado arco-íris de corpos femininos. Até mesmo as grandes beldades tornam-se menos distantes e as mastectomias menos aterrorizantes quando paramos de imaginá-las e as encaramos como na verdade são.

Mudar a artificialidade das imagens criadas pela mídia ajudaria, mas não é o bastante. Como crianças que olham fotografias de homens e mulheres realizando trabalhos não-tradicionais — mulheres empunhando maçaricos, por exemplo, e homens trocando fraldas de bebês — mas que voltam a inverter estes papéis em sua mentes semanas depois, nós só conseguimos reter uma imagem quando a experimentamos por completo. Um remédio unidimensional não pode curar um mal tridimensional.

Hoje, como a heroína adolescente de Gypsy, que só toma consciência do próprio corpo depois que começa a fazer stripteases, um número enorme de mulheres só tem a experiência do corpo feminino, do nosso e do de outras mulheres, em cenários sociais ou entre quatro paredes. Isto ocorre apenas quando estamos isoladas do mundo, em ambientes artificiais, expostas aos olhos masculinos ou ao julgamento convencional.

Um pouquinho dessa proximidade mostraria à Família de Mulheres o quão bela cada uma de nós é, e como nenhuma de nós é igual.

1981

Fonte: STEINEM, Gloria. Memórias da transgressão: momentos da história da mulher do século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 215-222.