De vez em quando, surgem teorias e práticas que pregam a diminuição do poder do Estado. Foi o caso, alguns anos atrás, da ascensão das ideias neoliberais, calcadas na intervenção estatal mínima na economia. Atualmente, é possível identificar discursos defendendo outra forma de diminuição do Estado, desta vez, desprezando a instituição política do Estado em favor de outras instituições.
Tem sido cada vez mais comum ouvir ou ler frases como “o Estado tem poder demais” e “precisamos fortalecer outras instituições”. Em parte, essas afirmações derivam do desencanto com a política partidária, seja por receio de corrupção, seja por não encontrar nela apoio a questões importantes para determinados grupos, como a defesa de povos indígenas, questões ambientais, combate ao racismo, ao machismo e à homofobia. Mas tais ideias também derivam da ignorância em relação ao poder estatal e das instituições que estão querendo valorizar.
Negar a importância do Estado como instituição que define as regras que devem ser seguidas por toda a sociedade significa também esvaziar o debate político. E, pior ainda, negar toda a construção histórica em torno de direitos humanos em nome de instituições que, em sua maioria, violam direitos.
O conservadorismo das instituições não estatais
Um dos problemas em relação a ampliar o poder das demais instituições é imaginar que elas são semelhantes ao Estado, tanto em sua história como estrutura. Assim, diminuir o poder estatal significaria simplesmente transferi-lo para outra instituição mais adequada aos próprios valores. Porém, as instituições não são intercambiáveis entre si: elas são diferentes em sua essência, e atuam em esferas diferentes. O que têm em comum é o poder calcado nos costumes e na moral, procurando induzir as pessoas a agir de determinada forma. Religião, família, escola são algumas das instituições com maior poder em nossa sociedade.
Nessas instituições, as regras a respeito de qual ação é permitida ou proibida são bastante rígidas e claras, baseando-se na tradição e nos costumes. O efeito dessas regras é bastante conservador. Procura-se manter as tradições mesmo que, para isso, a vontade dos indivíduos deva ser anulada. A liberdade sexual e de costumes, o combate ao racismo, os direitos de homossexuais, mulheres e crianças ainda são vistos com desconfiança por essas instituições, e há uma pressão constante para se voltar às tradições.
As mudanças de costumes são lentas, e muitas vezes só acontecem porque o Estado interfere, criando leis que alteram a dinâmica da instituição. A criação de uma lei para punir atos racistas tornou o racismo socialmente inaceitável e criticado. A proibição do trabalho infantil fez com que crianças passassem a ser vistas como sujeitos de direito e pudessem estudar em vez de serem submetidas a trabalho incompatível com sua idade. A aprovação do divórcio e posterior equiparação da união estável ao casamento tirou milhões de casais da clandestinidade, reconhecendo filhos e ampliando direitos como pensão em caso de morte.
Construindo o Estado
O Estado é uma instituição que foi historicamente construída para se sobrepor às demais instituições. Criado como alternativa ao poder religioso medieval e como forma de unificar sistemas jurídicos e políticos bastante diversificados, passou pelo fortalecimento da figura do monarca, chegando ao Absolutismo, marcado pela frase de Luis XIV, “O Estado sou eu”. Essa visão foi duramente criticada pelo Iluminismo e completamente subvertida com as Revoluções Burguesas.
A ascensão da burguesia fez com que fosse modificada também a lógica do Estado, reduzindo o poder da religião a ponto de se falar em Estado laico e reduzindo o poder do monarca e da nobreza, a ponto de se desenvolverem técnicas de ampliação da participação popular e implantar a república.
Foram criadas novas leis, recusando privilégios da aristocracia e incorporando valores burgueses em relação à propriedade e à democracia. Apesar disso, inicialmente foram mantidos vários dos costumes das demais instituições sociais, especialmente as regras da religião cristã em relação à família, mantendo as mulheres subjugadas aos homens – e foi necessária uma luta dentro da lógica dessas novas leis para quebrar esse tipo de discriminação. Isso só foi possível porque há a possibilidade de questionar e modificar costumes antigos por meio de lei, diminuindo o poder de outras instituições para ampliar discursos de reivindicação de participação política, direitos humanos e proteção a grupos discriminados.
O Estado moderno se diferencia das demais instituições por ter criado uma série de regras que limitam o seu poder e permitem o seu controle, impedindo ou procurando evitar que esse poder seja usado contra a sociedade. Existem a tripartição de poderes e um sistema de balanceamento no qual se procura evitar a concentração de poderes na mão de apenas uma pessoa – como era o caso do monarca no Absolutismo. Quem faz as leis não é a mesma pessoa ou o mesmo grupo que julga os conflitos causados pela lei. As regras devem ser leis claras e com a preocupação de evitar conflitos sociais.
E o Estado tem um poder que as demais instituições não têm: o poder de coerção, que consiste não só no monopólio do uso legítimo da força, mas na capacidade de poder forçar a pessoa a agir de determinada forma. Tem também o poder de criar e abolir crimes. Tem o direito de prender a pessoa que comete um crime, limitando seu direito de ir e vir. Tem o poder de obrigar as pessoas a pagar impostos, e a sofrer multa e sanções caso não façam o pagamento. E tem o poder de obrigar crianças a irem para a escola em vez de trabalhar, além da capacidade de punir quem desrespeitar a lei e empregar crianças.
O Estado tem o poder de mudar a sociedade, reconhecendo identidades historicamente discriminadas (como mulheres, pessoas negras e homossexuais), garantindo direitos a elas e lhes concedendo uma liberdade que elas não tinham em outras instituições. É importante lembrar que o Estado interfere na vida privada para impedir que as outras instituições pratiquem costumes que violem a lei, tais como manter uma pessoa em cárcere privado, torturá-la ou espancá-la por não ter seguido as regras dessas instituições.
Os problemas de desvalorizar o Estado
Abandonar a luta política e optar por desvalorizar o Estado significa a negação de um processo de conquista de direitos de grupos historicamente discriminados. As mulheres só obtiveram direitos porque argumentaram pela igualdade com base nas regras do Estado moderno; de outra forma, estariam ainda sendo proibidas de estudar, porque a instituição família e a maioria das instituições religiosas consideram que mulheres não precisam de educação quando sua função é ser apenas mães e esposas. Da mesma forma, se hoje o racismo é combatido, o casamento não é mais perpétuo e pessoas homossexuais têm seus direitos civis reconhecidos, isso se deve à compreensão do papel do Estado nas sociedades modernas: ele possibilitou a construção de um discurso para reivindicar direitos e impedir que fossem restringidos por causa das regras de uma ou outra instituição.
O que deveria ser o foco das demandas atuais é a ampliação desses discursos para encaixá-los no Estado democrático de direito. Afinal, o poder estatal permite estimular direitos sociais e forçar a mudança de costumes de forma bem mais efetiva do que se utilizando de outras instituições. Campanhas educativas são importantes, mas de impacto bem mais lento do que a obrigação de cumprir a lei.
Outra questão importante é que, ao abandonar a pressão para mudanças nas políticas estatais, abre-se espaço para que grupos que não sejam pluralistas ocupem esse lugar. É possível ter um retrocesso nas políticas de Estado, pois tais instituições irão impor as regras de sua instituição a toda a população, e não haverá pressão popular para impedi-las, posto que optaram por sair do debate político.
Se é uma instituição religiosa, o que se tem é a violação do Estado laico. E esse é um ponto delicado: não há liberdade para as pessoas se elas são obrigadas a seguir as regras de um grupo específico ao qual não pertencem. Não se deve obrigar um protestante a seguir a doutrina espírita nem um candomblecista a seguir a doutrina católica, nem um reconstrucionista helênico a seguir a doutrina judaica. E não cabe ao Estado obrigar ninguém a seguir as regras de uma determinada religião, mesmo que seja a religião da maioria: a minoria deve ser respeitada e não pode ser indiretamente forçada a obedecer as regras de instituição alheia. Pelo contrário: cabe ao Estado proteger a religião da minoria, impedindo que seus praticantes sejam perseguidos e impossibilitados de realizar seus cultos.
Para um Estado que tem poder demais, é possível controlá-lo de modo a impedir uma ditadura: pelo voto, pelo Judiciário, pela mídia, por pressão de ativistas (e a internet tem sido bem utilizada para articular ações), por interferência direta em políticas públicas. Nesse caso, a sociedade se defende contra os excessos do Estado.
Porém, se a opção for pela transferência de parte desse poder a outras instituições, não haverá Estado para impedir o massacre do indivíduo discriminado em nome de regras medievais que violam direitos humanos. Para defender a sociedade, há momentos em que é necessário defender o Estado para preservar o Estado laico e para garantir a autonomia das pessoas e o respeito aos direitos humanos.
Artigo publicado originalmente na edição impressa nº109 (abril de 2012) da Revista Fórum
[…] “não temos direitos“, “não vou procurar resposta judicial porque não quero fortalecer o Estado” ou “não importa o que dizem a Constituição ou a legislação“, mesmo quando […]