Estado laico: sua religão não é nossa leiO Brasil já foi um Estado religioso: durante o Império a religião oficial era a católica apostólica romana (art.5º da Constituição de 1824). As diversas certidões que regem a vida civil (nascimento, casamento e óbito) eram emitidas pela Igreja, confundindo os atos religiosos com os atos civis. As leis que envolvessem direitos para mulheres ou para pessoas que se relacionavam com outras pessoas do mesmo sexo deveriam seguir as regras ditadas pela Igreja Católica. A sodomia era crime, o divórcio era proibido e mulheres estavam obrigatoriamente subordinadas ao pai ou ao marido.

A proclamação da República trouxe à tona a discussão sobre laicidade do Estado, e o processo seguinte foi o de obrigar as pessoas a registrarem os atos civis em cartórios, e não mais em igrejas. Mesmo assim, as regras para esses atos continuaram sendo as religiosas. O divórcio continuou proibido até 1977 e o casamento só era reconhecido se fosse entre homem e mulher. Por mais que sodomia tenha deixado de ser crime, foi tratada como a doença homossexualismo, reproduzindo preconceitos religiosos por meio do discurso científico, consolidando a exclusão da discussão de direitos que hoje reconhecemos como LGBT.

Os direitos LGBT só existem atualmente porque grupos ativistas se articulam de acordo com as leis do Estado para reivindicar que não sejam discriminados nem punidos por causa da orientação sexual. Essas ações corrigem uma distorção jurídica e social ao procurar igualar seus direitos ao de pessoas heterossexuais.

Esse é um processo constante, que não se esgota: é necessário a todo momento pressionar para que o Estado atue em favor de pessoas LGBT ao invés de tratá-las como cidadãs de segunda classe. Do contrário, corre-se o risco de perder os direitos arduamente conquistados, como vem acontecendo frequentemente com os direitos das mulheres (existem atualmente diversos projetos de lei e políticas públicas que seguem preceitos religiosos ao tratar mulheres como incubadoras, ignorando o direito de autonomia das mulheres sobre seus corpos).

Parte do processo de reivindicação de direitos está exatamente em efetivar o Estado laico para que a discriminação que decorre de preceitos religiosos seja exposta, criticada e abolida da legislação e das políticas públicas.

Para ficar em exemplos mais próximos do cotidiano, o casamento não deveria repetir o modelo religioso que envolve apenas um homem e uma mulher, podendo adotar uma variedade infinita de formas de acordo com os interesses das diversas pessoas envolvidas. A adoção não precisa ter como modelo fundamental a família nuclear defendida pela religião. Direitos trabalhistas e previdenciários não devem estar atrelados ao sexo do cônjuge. Homossexualidade não é e não deve ser tratada como doença, nem deve haver dinheiro público financiando clínicas de “tratamento”, como querem alguns representantes religiosos. Violência contra pessoas LGBT para se adequarem a normas religiosas não deve ser aceita e cabe ao Estado agir, criando leis contra esse tipo de violência e atuando para que as leis sejam efetivamente cumpridas.

É importante frisar que o Estado laico não é anti-religião: o Estado laico não se importa com religião. Se as pessoas preferem professar uma religião monoteísta ou politeísta, se desejam trocar de religião ou se não crêem em religião, essa é uma questão pessoal que em nada deve interferir nas leis. No Estado laico todas as religiões coexistem, mas nenhuma delas procura se impor às outras, seja por meio de violência, seja por meio de leis.

Atualmente, as ações ativistas fazem com que os direitos LGBT venham sendo progressivamente reconhecidos. Porém, a resistência religiosa a esses direitos é bastante comum, seja por meio de projetos de lei que querem reverter decisões judiciais (como os recentes reconhecimento de união estável ou da possibilidade de adoção), seja por projetos de lei e políticas públicas que desejam patologizar a homossexualidade e reforçar a patologização da transexualidade.

A base de todos esses projetos é a imposição de uma visão religiosa que vem sendo ostensivamente propagada pela bancada religiosa da Câmara dos Deputados, influenciando ainda o poder Executivo. É necessário lutar para que essa imposição religiosa diminua, prevalecendo o Estado laico.

A legislação tem o poder de mudar a sociedade ao reconhecer identidades historicamente discriminadas (como mulheres, pessoas negras e homossexuais), garantir direitos a elas e lhes proporcionar uma liberdade que elas não tinham quando eram governadas somente por instituições religiosas. Porém só haverá liberdade para LGBTs se o Estado for laico, impedindo que a religião norteie políticas de Estado e se imponha a quem não a professa.

Artigo publicado originalmente em 12/08/2013 no site do Cellos-MG, integrando a campanha da XVI Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte: Estado laico: sua religião não é nossa lei.