Em junho publiquei no Voz Acadêmica, jornal do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), da Faculdade de Direito da UFMG, um artigo explicando em linhas gerais o Estatuto do Nascituro e suas implicações para os direitos das mulheres. A edição está bastante interessante, dedicada a minorias, com artigos sobre o trote horrendo que teve em março, sobre movimentos sociais, sobre Estatuto do Nascituro (o meu artigo, que reproduzo neste post) e sobre a Marcha das Vadias. A íntegra da edição pode ser lida em PDF ou então online.
As mulheres como sujeitos são uma conquista recente na história do direito. Olympe de Gouges, em plena Revolução Francesa, foi decapitada por ter ousado escrever a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, requerendo que o status de cidadãos, destinado aos homens, fosse estendido às mulheres. Ao longo dos últimos séculos, mulheres se tornaram cidadãs e conquistaram inclusive a igualdade jurídica em relação aos homens.
Porém, ainda hoje nos cursos jurídicos há pouca discussão sobre direitos das mulheres e sua história. Existe uma presunção de que as questões que afetam mulheres têm menor importância e não precisam ser mencionadas. Trata-se de um erro, obviamente, posto que mulheres são 52% da população brasileira, e suas necessidades específicas precisam ser conhecidas, debatidas e solucionadas de forma a se obter uma igualdade de direitos real. Mas, ao ignorar essas peculiaridades, o que se tem são gerações de juristas que não só desconhecem a história das conquistas dos direitos das mulheres, mas que também ignoram que essa é uma luta contínua e sujeita a retrocessos que precisam ser combatidos.
Um desses retrocessos está intervenção política feita por grupos religiosos. Como certas religiões consideram que mulheres devem ser submissas aos homens e se realizar na maternidade, os representantes dessas religiões (especialmente cristãos) interferem em políticas públicas e propõem projetos de lei para limitar a autonomia das mulheres para decidirem sobre seus corpos e suas vidas. Como resultado disso, tem-se não só a violação da laicidade do Estado, mas também a negação da mulher como sujeito de direitos, transformando-a em um corpo a ser manipulado de acordo com a vontade religiosa.O exemplo mais recente dessa intervenção religiosa na política está no “Estatuto do Nascituro”. Trata-se do projeto de lei nº478/2007, que dispõe sobre os direitos do nascituro. Sua tramitação vem sofrendo contínuas críticas, inclusive que geraram um substitutivo com termos genéricos mas que mantém a ideia principal de sobrepor os direitos de um embrião aos direitos de uma mulher adulta. Em qualquer leitura que se faça, o que fica nítido é que o Estatuto do Nascituro não foi criado pra conceder direitos aos nascituros, mas para limitar os direitos das mulheres.
O projeto original do Estatuto do Nascituro é explícito em reduzir esses direitos das mulheres, a começar pela proibição total do aborto. Mulheres estupradas seriam forçadas a conviver com o fruto do estupro, inclusive recebendo uma pensão do Estado caso não tenham condições financeiras para sustentar a criança. O projeto não fala em punir o estuprador, mas em registrá-lo na certidão de nascimento como pai (concedendo-lhe direitos paternos) e cobrar pensão alimentícia – o que gera a sensação de que o estupro não é crime quando resulta em gravidez. Essa é uma inversão de valores absurda, que fere a dignidade, não só sexual, da mulher estuprada: de sujeito de direitos foi transformada em incubadora e a violência sexual que sofreu foi minimizada em nome da maternidade obrigatória e involuntária. Devido a esse viés, o Estatuto do Nascituro vem sendo chamado de Estatuto do Estuprador, pois protege o estuprador e ignora a mulher.
Uma questão grave do projeto original está na obrigatoriedade da continuidade da gravidez em casos de risco de morte da gestante. Mulheres que estejam doentes (com câncer, por exemplo), deverão primeiro terminar a gravidez para depois se submeter ao tratamento, dificultando enormemente suas chances de cura. Da mesma forma, mulheres cardíacas que porventura engravidarem deverão correr o risco de morrer.
Mesmo que o substitutivo tenha voltado atrás nessas questões, procurando manter a legislação atual sobre aborto (permitido em casos de estupro ou risco de morte da gestante), não há nada que garanta que esta seja a versão final do projeto, pois a qualquer momento pode-se retomar o projeto original. E mesmo o substitutivo limita alguns tipos de exame pré-natal (pois há exames que podem resultar em aborto espontâneo) e impede a antecipação de parto de anencéfalos ao determinar que “o nascituro terá à sua disposição os meios terapêuticos e profiláticos disponíveis e proporcionais para prevenir, curar ou minimizar deficiências ou patologia” e que o “diagnóstico pré-natal é orientado para respeitar e salvaguardar o desenvolvimento, a saúde e a integridade do nascituro”. Essa abordagem simplesmente ignora a vontade da mulher, colocando em risco sua saúde física e psicológica para levar a termo uma gestação que resultará infrutífera e dolorosa.O projeto também criminaliza a discussão sobre legalização do aborto, ou utilizar termos pejorativos para se referir ao embrião ou feto. E, por entender que a proteção do nascituro começa na concepção, inclusive em casos de concepção in vitro, veda pesquisas com células-tronco. Há ainda uma abertura para a proibição de uso de alguns métodos contraceptivos, como o DIU ou a pílula do dia seguinte.
Para se discutir o Estatuto do Nascituro é necessário ter empatia. É importante se colocar no lugar da mulher grávida de um estuprador, da mulher que tem de escolher entre sua saúde ou a gravidez, da mulher que sofre aborto espontâneo e tem de lidar com olhares acusadores ao invés de apoio, do casal cujos métodos contraceptivos falharam e perceber suas angústias e dúvidas. Também é importante se imaginar no lugar das pessoas que podem beneficiar de pesquisas com células-tronco e vêm essas pesquisas sendo proibidas por conta de uma discussão religiosa que não deveria afetar um Estado Laico como o Brasil.
O Estatuto do Nascituro cria uma hierarquia que viola a igualdade de gênero. Quem não engravida tem prioridade em tudo, sendo cidadão de primeira classe; o não-nascido está na segunda classe e a mulher quem engravida está na terceira, perdendo seus direitos e sua autonomia em nome de um não-nascido. É uma situação absurda e injusta (por que um não-nascido vai ter prevalência sobre uma pessoa nascida?) e que vem sendo justificada por meio do discurso religioso e da violação do Estado laico.
Uma questão delicada é a velocidade com que o Estatuto do Nascituro vem tramitando nas comissões legislativas nos últimos meses. Tinha-se por óbvio que o Estatuto não seria aprovado na comissão de finanças, pois não havia a previsão orçamentária necessária para implantar a “bolsa-estupro”. No entanto, o Estatuto foi aprovado por ampla maioria de votos sem que se discutisse a questão orçamentária, deixando entrever seu viés conservador tentando impor um modelo religioso a um Estado laico.
Depois de anos de avanços, com o fim dos termos sexistas no Código Penal, a lei Maria da Penha, uma flexibilização maior no conceito de família, a permissão para antecipação do parto de anencéfalos, o que estamos vendo é a reação conservadora querendo retroceder em todos os direitos conquistados pelas mulheres na última década, realizando isso por meio do controle dos corpos femininos, através do Estatuto do Nascituro.
Um antigo slogan feminista afirma “o silêncio é cúmplice da violência”. É o silêncio que vem fazendo o Estatuto do Nascituro ir agregando ao longo dos anos o que há de mais violento e conservador em relação aos direitos das mulheres. E é o silêncio de juristas que não se importam nem sabem nada sobre direitos das mulheres que vem fazendo com que este projeto venha tramitando sem muita oposição além do movimento feminista.
O Estatuto do Nascituro é um retrocesso em relação aos direitos das mulheres. Cabe a nós, juristas, nos juntarmos à mobilização para impedir a aprovação desse absurdo que retira das mulheres sua autonomia e nega que sejam sujeitos de direito.
Obrigada pelo texto esclarecedor. Acho que esta questão deveria ser mais divulgada.
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