Criei este post como um texto longo, subdividido em tópicos relacionados entre si. Achei melhor fazer assim, para concentrar todas as informações no mesmo hiperlink, ao invés de pulverizá-las em outros links.
- O equívoco de presumir que a igualdade entre homens e mulheres foi obtida no início do século XX, com o direito ao voto
- A lei muda, mas os costumes continuam os mesmos
- E como fica a situação dos homens vítimas de violência doméstica?
- Violência doméstica não é a mesma para homens e mulheres
Não pretendo esgotar o assunto. Apenas procurei abordar alguns pontos que vêm sendo sistematicamente criticados porque não há conhecimento histórico a respeito dos direitos das mulheres. Quem quiser conhecer outros posts que escrevi sobre violência contra mulheres, irá encontrá-los neste blog arquivados na categoria violência.
Todas as imagens desse post são cartoons que fizeram parte da campanha portuguesa Violência não faz meu gênero.
O equívoco de presumir que a igualdade entre homens e mulheres foi obtida no início do século XX, com o direito ao voto
Só muito recentemente, no final do século XX, é que mulheres passaram a ser cidadãs. Assim como os escravos, não tinham direitos, eram equiparadas a coisas, e eram propriedade do pai ou do marido. Diversos autores e filósofos (incluindo Rousseau e Maquiavel) negavam cidadania e legitimavam violência contra mulheres. Durante a Revolução Francesa, Olympe de Gouges, a mulher que ousou escrever a “Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã”, foi guilhotinada. No período após a Revolução Francesa estabeleceu-se de vez a base para todo o direito ocidental. Essa base é totalmente sexista e patriarcal, pois coloca as mulheres como inferiores, subordinadas ao pai ou marido.
Por serem consideradas inferiores ao homem, mulheres eram submetidas ao ius corrigendi. Trata-se do direito do homem (pai ou marido) bater em sua filha, irmã ou esposa para corrigir seus modos. Havia previsão legal para essa prática, que os juízes tratavam como válida e adequada. A lei caiu, mas a prática, não.
O direito ao voto feminino no Brasil foi uma breve conquista em um período famoso por seu conservadorismo, no qual mulheres foram juridicamente reduzidas ao casamento e à maternidade. O Código Penal condicionava a punição de uma série de crimes à “honestidade” da vítima mulher (esses trechos só foram abolidos em 2005), sendo que essa tal “honestidade” e honra da mulher repousavam em sua virgindade ou monogamia ostensiva (ela perdia o respaldo jurídico se suas roupas, seus hábitos ou sua postura social pareciam não serem monogâmicas).O Código Civil de 1916 (que vigorou até 2002, embora estivesse desde 1962 parcialmente alterado pelo Estatuto da Mulher Casada) não permitia o divórcio, e ainda dava ao homem o direito de ser o cabeça do casal, ter o pátrio poder. Também era permitido devolver a mulher à família dos pais – completamente desonrada – caso ela não fosse mais virgem. Mulheres precisavam da autorização do marido para trabalhar e receber herança.
A educação escolar pública e obrigatória foi um bom passo para acabar com a desigualdade (indo além da mentalidade de que estudos eram considerados desnecessários para quem tinha de ser apenas mãe e dona-de-casa), mas foi seguida por diversas restrições culturais (cursos sérios x cursos espera-marido) aos estudos superiores. O Estatuto da Mulher Casada (1962) foi fundamental para melhorar a situação das mulheres. Depois veio a Lei do Divórcio (em 1977!) e a Constituição de 1988, que acabou de vez com a hierarquia jurídica que colocava o homem como superior à mulher.
A lei muda, mas os costumes continuam os mesmos
Mesmo com todas as mudanças na legislação, a mentalidade continuou patriarcal e contrária às mulheres. Praticamente todos os agressores de mulheres estão ligados a elas por relações afetivas ou familiares e abusam dessa posição para submetê-las a uma relação de dominação. Eles as consideram como propriedade, e não têm escrúpulos de se valer do ius corrigendi, através de violência psicológica, espancamentos, estupro e até morte para submetê-las a suas ordens.
E o Estado, que deveria proteger todas as pessoas, acabou acobertando os agressores. A atuação das autoridades estatais (incluindo-se aqui policiais, promotores, juízes e advogados – profissões até recentemente exclusivamente masculinas) era prejudicial à vítima. Agiam sempre no sentido de considerar a agressão a mulheres uma questão menor, privada, que não merecia sequer investigação, quanto mais um processo judicial.
Nota-se que há uma violação da igualdade de direitos nesses casos: embora a lei inicialmente não fizesse distinção em razão de sexo nos casos de lesões corporais ou homicídio, os costumes fizeram essa diferenciação, dificultando o acesso das mulheres à proteção do Estado. Em outras palavras, o Estado acabou por acobertar a violência praticada contra mulheres ao permitir que seus agentes ignorassem a violência sofrida por elas.
É por isso que a lei Maria da Penha, que está completando cinco anos, é apenas para mulheres. Ela procura corrigir essa distorção nos costumes que faz com que as mulheres, que apenas recentemente se tornaram juridicamente iguais aos homens, ainda seja tratadas como propriedade deles, sofrendo violência quando não desejam se submeter à vontade dos agressores.E como fica a situação dos homens vítimas de violência doméstica?
Existem homens que sofrem violência doméstica? Sim. E sempre tiveram a lei para protegê-los. Quando são crianças, aplica-se o Código Penal e o Estatuto da Criança e Adolescente. E, para as poucas vítimas que são homens adultos, aplica-se o Código Penal (como sempre foi aplicado, aliás).
Alguns argumentam que os homens que sofrem violência doméstica têm vergonha de denunciá-la, pois seriam considerados “frouxos” e incapazes de correspondem à postura que se espera de um “macho”. Eu acho bastante complicado esse argumento, pois a pressão cultural sobre posturas adequadas para homens e mulheres também atua, e bem mais incisiva, no sentido oposto: estima-se que uma mulher é agredida a cada 15 segundos, mas são pouquíssimas as que têm coragem de denunciar a violência sofrida. Por quê? Porque essas mulheres não estão preparadas psicologicamente para o tratamento que receberão, quando serão questionadas a respeito de suas roupas, de seus hábitos, ou até de sua “pouca vergonha” por aceitar uma relação violenta por tanto tempo. Até parece que o sistema judicial do início do século XX continua em vigor…
Todas as vítimas, sejam homens ou mulheres, têm o direito de serem bem atendidas quando denunciam a violência que sofreram. Porém, a prática não costuma ser assim. Um homem talvez até seja indevidamente ridicularizado na delegacia, mas ele em seguida encontra empatia, defensores, sua queixa será levada a sério e provavelmente resultará em inquérito policial e até processo judicial.
As chances de uma mulher receber o mesmo tratamento são poucas, bem poucas. Ela raramente recebe empatia: é julgada e criticada do início ao fim do atendimento. Se não fosse a Lei Maria da Penha, que OBRIGA o atendimento a ser menos sexista, o tratamento seria muito pior. E não podemos nos esquecer dos juízes se negando a aplicar a lei Maria da Penha, apesar de juristas e tribunais (inclusive o Supremo Tribunal Federal) afirmarem que a lei é constitucional e que não fere o princípio da igualdade.
Curiosamente, diversos críticos da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres são ferozes defensores de sua aplicação nos pouquíssimos casos que envolvem homens vítimas de violência doméstica. Repete-se aqui o machismo: para as mulheres, nada; para os homens, tudo, inclusive uma lei criada para coibir a violência contra mulheres.
Violência doméstica não é a mesma para homens e mulheresDizer que a violência doméstica é a mesma para homens e para mulheres é uma falsa simetria. Homens não são, historicamente, vítimas de violência doméstica. Muito pelo contrário: são agressores. É absurdo querer que a exceção (homens adultos vítimas de violência doméstica) seja a regra pela qual as mulheres serão julgadas.
Muita gente desinformada acha que a lei Maria da Penha ficaria melhor se fosse escrita com linguagem neutra (parte agressora, parte agredida, por exemplo). Só que a linguagem neutra mascara a seletividade de gênero e reforça as falsas simetrias: a enorme maioria das vítimas de violência doméstica é mulher. E essas mulheres só são vítimas porque existiu até poucos anos atrás um sistema de opressão legal que negava direitos às mulheres.
No caso da Lei Maria da Penha, é importante que ela exista e seja aplicada apenas para mulheres. Temos de lembrar que, por mais que estejamos avançando em relação à igualdade entre homens e mulheres, igualdade jurídica é recente, e ainda não existe de fato. Existe uma disparidade na situação de homens e mulheres, e que as leis e o tratamento nesses casos devem ser diferentes para que essa disparidade diminua.
Ainda temos um longo caminho a percorrer, denunciando e procurando soluções para que o passado de opressão e restrição de direitos femininos seja efetivamente destruído. Negar às mulheres o direito a receber atenção específica do Estado, como é o caso da Lei Maria da Penha, para resolver distorções de gênero é uma forma de tentar manter as mulheres como cidadãs de segunda classe, perpetuando a desigualdade que vigorou por tantos séculos.
[…] Lei Maria da Penha e a igualdade entre homens e mulheres, por Cynthia Semiramis […]
se alguém ainda não tiver entendido o por quê de a lei proteger apenas mulheres vítimas de violência doméstica após a leitura de seu post, nem mesmo com desenhor essa pessoa entenderá.
Excelente texto! Muito elucidativo!
Olá Cynthia! Adorei o seu texto, muito claro. Apesar de entender a importância da lei, confesso que não tinha muito conhecimento e/ou argumentação para combater aqueles que a julgam inconstitucional e desnecessária. Seu post me esclareceu muito!
Vou compartilhar, ok? Abraços!
Cabe lembrar que a Lei Maria da Penha é um progresso dentro do retrocesso, pois o Brasil foi forçado a promulgá-la em razão de uma condenação internacional (OEA, se não me engano). Foi uma declaração de completa e absoluta incompetência de nosso sistema para lidar com violência contra mulheres.
Mas, pelo menos, seguimos a condenação, ao invés de lhe dar uma banana.
Cynthia,
A ANDI – Comunicação e Direitos realizou três análises de mídia sobre cobertura de gênero. Duas já foram publicadas: a primeira sobre Mulher e Política, com foco nas eleições de 2010; a segunda sobre Mulher e Trabalho. Esta aponta que a imprensa dá mais importância a casos individuais de sucesso que a execução de políticas públicas voltadas a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. A próxima análise deve ser divulgada em duas semanas e tratará da cobertura de mídia sobre violência contra a mulher. Estamos com inscrições abertas para seminário de divulgação dos levantamentos na íntegra. Gostaríamos de contar com sua participação. O link para o resumo sobre Mulher e Trabalho é http://tinyurl.com/3dtrvhr.
Abraços e parabéns pelo trabalho,
Cristina Sena
jornalista – ANDI Comunicação e Direitos
csena@andi.org.br
[…] sendo que é palco de violência doméstica (que é tão comum e grave a ponto de precisarmos da Lei Maria da Penha pra tentar reverter esse quadro). É bom não esquecer que o caso de Queimadas chamou a atenção […]
[…] O foco no sentimentalismo de casos individuais, o anseio por solução midiática e a viralização em redes sociais (que pode se tornar um caso de linchamento moral, com desdobramentos judiciais) acabam ofuscando a luta por direitos. E também é nítida a ignorância ou desprezo aos direitos já conquistados quando são feitos comentários como “não temos direitos“, “não vou procurar resposta judicial porque não quero fortalecer o Estado” ou “não importa o que dizem a Constituição ou a legislação“, mesmo quando se está aplicando a Lei Maria da Penha. […]