Já falei um pouco sobre como os mitos em relação ao feminismo interferem na minha vida [1 | 2 | 3]. Porém, não falei de um que é dos mais chatos possível. Mulheres são cobradas para serem perfeitas: não podem errar porque aí estarão depondo contra todas as mulheres e abrindo espaço para os comentários machistas que ainda hoje querem crer que mulheres são inferiores aos homens [ironia:]sendo que homens nunca erram, é claro; quando erram, é uma falha individual que em nada depõe contra todos os homens[/ironia]

Capa da edição de julho de 1972 da revista feminista Ms. Será que mulher só pode ter destaque se for uma heroína? Eu prefiro pessoas reais solucionando problemas reais

Capa da edição de julho de 1972 da revista feminista Ms. Será que mulher só pode ter destaque se for uma heroína? Eu prefiro pessoas reais solucionando problemas reais

Aplicando esse raciocínio ao feminismo temos o mito da perfeição e genialidade. Muitas pessoas presumem que feministas são geniais, perfeitas, inteligentíssimas, pessoas fantásticas sem problema algum e com todas as soluções possíveis. Aí, quando essas pessoas descobrem que você teve algum problema, ou a solução sugerida não funcionou, começam furiosas a bradar: “que espécie de feminista é você que não sabe resolver isso?” como se o fato de sermos feministas nos transformasse em uma deusa, heroína de história em quadrinhos ou outra coisa sobre-humana.

Tem coisa mais mentirosa que isso? Feministas também são seres humanos, ou seja, temos problemas no cotidiano, dúvidas, incertezas, dificuldades, e intelectualmente podemos ser maravilhosas em matemática e péssimas em redação, e vice-versa, ou nada disso, muito pelo contrário.

As pessoas me perguntam sobre conciliar cuidados com a casa, vida afetiva e vida profissional como se eu, por ser feminista, soubesse todas as respostas. Eu não sei, e ninguém sabe ao certo. Tem coisas que funcionam pra mim, e podem não funcionar pra outras pessoas. E tem coisas que só vão funcionar em determinadas situações ou épocas, não existe receita pronta.

Minha irmã me trouxe este quadrinho de Buenos Aires. Resume bem o quanto temos de fugir da busca incessante por perfeição. Se não posso ser perfeita, escolho cuidar de mim. A casa pode esperar...

Minha irmã me trouxe este quadrinho de Buenos Aires. Resume bem o quanto temos de fugir da busca incessante por perfeição. Se não posso ser perfeita, escolho cuidar de mim. A casa pode esperar…

O que nós, feministas, temos de diferente é que questionamos o tempo todo. Não aceitamos ouvir “é assim, sempre foi assim, e ponto final”. Vamos pesquisar, vamos duvidar, vamos identificar injustiças e desigualdades, e vamos tentar arrumar alguma solução para que mulheres não sejam mais prejudicadas do que já são. Questionar não é sinônimo de perfeição, no máximo indica que sabemos reconhecer que o mundo não é perfeito.

Muitas mulheres já me disseram que não podem ser feministas porque se sentem fracas, medrosas, são péssimas alunas, não são geniais, ainda são iniciantes “nessa área” e acham que não vão muito longe. Nota-se a imposição da perfeição: se você não é genial e perfeita, não merece emitir opinião nem se definir politicamente, muito menos batalhar para aperfeiçoar seus conhecimentos.

Todas as mulheres que me falaram isso são feministas, sim, mas levaram um tempinho até se sentirem à vontade para trocar ideias e se assumirem feministas. O mito de perfeição das feministas foi tão forte que elas se sentiam intimidadas, inferiorizadas, e quase mataram o mais importante: a capacidade de trocar ideias, de questionar preconceitos, de se indignar e de lutar para acabar com a opressão em que vivemos.

Esta é a capa da 1ª edição da revista feminista Ms., de 1972. Ainda hoje estamos discutindo as habilidades multitarefa das mulheres e a pressão por perfeição em todas as atividades.

Esta é a capa da 1ª edição da revista feminista Ms., de 1972. Ainda hoje estamos discutindo as habilidades multitarefa das mulheres e a pressão por perfeição em todas as atividades.

Eu não nasci feminista, eu me tornei feminista. E isso só ocorreu na minha vida adulta, no meio de um mestrado. Passei por tantos episódios machistas que perdi a conta, e acho que demorei demais pra identificá-los como machistas porque não nasci em família feminista e nem vivi em ambientes feministas. O que importa é que esse processo de me tornar feminista me fortalece e muda minha vida. A cada vez que questiono a forma como eu vivo, a cada vez que leio livros feministas, a cada vez que vou a eventos feministas, a cada vez que converso com feministas eu aprendo mais um pouco sobre mim e sobre outras pessoas, e tanto eu quanto meu feminismo se fortalecem. Mas daí a presumir que tudo o que eu faço é perfeito, vai uma grande distância entre o esforço para superar uma situação de opressão e a lenda pura e simples.

Eu não quero alimentar lendas de perfeição, eu quero incentivar mulheres a superarem situações que lhes são prejudiciais, e preciso que elas me ajudem também. Afinal, eu não tenho respostas prontas, e em certas áreas sou completamente ignorante. Não somos perfeitas e não temos de sentir culpa por isso.

Não podemos deixar que o mito da perfeição, além de atrapalhar a vida das mulheres, impeça as feministas de se assumirem feministas. Isso cala as nossas vozes, impede nossos diálogos, e mantém a opressão. Nenhum mulher ganha com isso.

Publicado no Blogueiras Feministas em 7 de agosto de 2011.