Poucas coisas são mais irritantes do que ler ou ouvir que os homens e mulheres têm papéis diferentes na família, devendo ele ser o provedor e protetor da família, responsável pela educação dos filhos e organização familiar. Isso pressupõe um modelo de família inconstitucional, porque hierarquizado, com supremacia masculina (por, supostamente, ter vida pública e ganhar o dinheiro para o sustento), focado em um casal heterossexual, sem direito a divórcio ou outras formas de arranjo familiar.

Por essa perspectiva limitada, como explicar que, após o divórcio, muitas mulheres prefiram chefiar suas famílias sozinhas? Como explicar que existem tabto homens quanto mulheres viúvos e cuidando sozinhos de suas famílias? Como explicar diversas famílias vivendo no mesmo terreno, sob as orientações de uma mulher mais velha? Como explicar casais, heterossexuais ou não, que têm uma relação equiparada, na qual não cabe essa visão de macho provedor e ambos dividem as funções na família? Como explicar que filhos criados sem pai (e são um número expressivo) podem ser tão normais quanto os criados com pai, sendo que nunca precisaram da figura ultrapassada de um pai-censor-educador? Essa diversidade de arranjos familiares não pode ser esquecida!

Não faz sentido falar em uma família ideal, mítica, heterossexual, hierarquizada, especialmente quando discutimos casos de violência doméstica. Mais grave ainda é enfatizar essa hierarquia, supondo a predominância masculina sobre a feminina. Primeiro, por criar, indiretamente, a figura do cabeça do casal, que foi devidamente excluída do mundo jurídico com a Constituição de 1988. Segundo, por inverter o grande problema da violência doméstica, que é o excesso de agressividade de, na enorme maioria dos casos, um homem que busca subjugar os demais familiares com base em uma falsa supremacia.

Ao dizer que a posição do homem deve prevalecer em casos de violência domésticas, certo juiz de Sete Lagoas que enviou para a Folha uma nota de esclarecimento e se dizer mal interpretado, afirmou o seguinte:

De minha parte não tenho dúvida alguma que deverá prevalecer a decisão do marido. E vou mais longe: creio que não será do agrado da esposa que fosse o inverso, porque, repito, a mulher não suporta o homem emocionalmente frágil, pois é exatamente por ele que ela quer se sentir protegida– e o deve ser –e não se sentiria assim se fosse o inverso!

Ao afirmar que a mulher precisa obedecer um macho frágil que finge ser forte e por isso agride os familiares, ele não só está permitindo que a agressão continue (ao invés de aplicar a lei para cessá-la), mas também está legitimando o exercício da força para que a mulher se torne obediente. Mais grave ainda é ele dizer como a mulher deve ser ou agir, atribuindo-lhe pensamentos e atitudes que ele considera corretas, sem se preocupar com a vontade dela. Dessa forma, a vítima é agredida duas vezes: sua opinião sobre a agressão não é levada em conta, e a violência que sofreu é ignorada em nome de uma predominância masculina inconstitucional. Não há homem fraco aqui, mas um homem forte contra uma mulher fraca e extremamente vulnerável. E é essa a visão que esse juiz tem de relações familiares adequadas!

Não tenho tempo para comentar toda a nota do juiz, mas esse trecho me chocou, pois ele realmente tenta justificar a supremacia masculina com base no mito do macho protetor e provedor. Infelizmente muitos homens ainda confundem sua masculinidade com a idéia de fornecerem estabilidade financeira, e não sabem o que fazer com esses conceitos quando a mulher não precisa ser dependente financeiramente. Partir para a violência doméstica é uma forma de se impor na relação.

Como já disse antes, a Lei Maria da Penha é constitucional. A gigantesca maioria das vítimas de violência doméstica são mulheres, o que justifica um tratamento diferenciado para coibir as especificidades dessas agressões, o que inclui legislação e políticas públicas. É interessante observar que a maioria dos contrários à lei são os homens, que se sentem discriminados. Deveriam é se sentir privilegiados por não serem alvo de agressões sistemáticas que desvalorizam, inferiorizam e ferem as vítimas física e psicologicamente.

Também me impressiona ver que não há manifestações do movimento feminista relacionadas diretamente a nenhum dos textos que linkei sobre a repercussão dos trechos da sentença. Sei que elas aconteceram, mas é curioso não estarem visíveis. Enviei e-mail ao jornal “O Tempo”, mas na seção de cartas online só apareceu um elogio ao juiz. O diretor executivo respondeu ao meu e-mail dizendo que leu a matéria por alto, pois “estes assuntos feministas não fazem parte domeu rol de interesse[sic]”. Isso, vindo de um jornal que tem uma colunista feminista, é deveras preocupante. A idéia equivocada de que a lei Maria da Penha é inconstitucional vai ganhando força, e parece não encontrar ninguém para dizer o contrário. Precisamos divulgar a sua constitucionalidade, e evitar o pânico. O que é inconstitucional não é a lei, mas o tratamento que vem sendo dado a ela.

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