Roman Polanski tinha 44 anos quando, em 1977, nos Estados Unidos, drogou e estuprou uma adolescente de 13 anos. Após negociações com o Ministério Público, foi processado por sexo ilegal com menor de idade. Durante o processo, fugiu dos EUA e, de lá até poucas semanas atrás, desenvolveu uma vida pública e carreira de sucesso, embora escolhesse cuidadosamente os países que visitava para não correr o risco de extradição para os EUA. Tantos cuidados não adiantaram muito: foi preso em uma visita à Suiça, e provavelmente será extraditado.

Li posts sobre o assunto, e algumas coisas me chocaram. Correndo o risco de decepcionar muita gente, e perder amigos queridos, acho importante me manifestar sobre alguns pontos do caso, especialmente sobre o discurso anti-prisional.

Nem discuto se foi estupro ou não, se a mãe tem culpa, ou não. Todos os relatos são claros em afirmar que a vontade da vítima foi desrespeitada; logo, foi estupro. Se o Ministério Público fez acordo pra mudar a acusação, essa é uma questão processual que em nada muda o fato de que a vítima foi estuprada – essa talvez tenha sido a melhor forma encontrada para haver algum sinal de reprovação pública pela conduta de Polanski. Sobre a culpa da mãe, o fato da vítima não ser mais virgem (nem acredito que ainda discutimos com base nessas pérolas da década de 1930! Daqui a pouco vão dizer que, se a vítima se casasse com o agressor, o Estado não poderia puni-lo pelo estupro) e bobagens machistas semelhantes, recomendo os posts da Mary W.

Como não tenho tido tempo para analisar o caso, nem conheço a fundo o sistema judicial estadunidense, ainda não entendi porque não ocorreu a prescrição. No meu entender, prescrição é fundamental em um Estado de direito (é por isso que insisto na celeridade do processo – não me parece justo, nem para o réu, nem para a vítima, atormentar suas vidas com um processo se arrastando por dez, vinte anos). Mas, antes que alguém venha dizer que estou defendendo o Polanski: não estou. Particularmente, acho horrível pensar -e defender – que um acusado de estupro se encontre sem punição por tanto tempo, sendo um foragido reconhecido, financiado, protegido e aclamado por tantas pessoas importantes e famosas (por que não há tanto esforço quando um egresso do sistema prisional vai procurar emprego? E, se fosse uma acusação de homicídio, haveria tanta proteção e apoio assim? Ou será que isso só aconteceu porque em nossa sociedade machista as agressões contra mulheres ainda são consideradas questões menores?)

Porém, o que me impressionou foi ver tanta gente discutindo se prisão é a solução para o caso.

Prisão é o que a lei prevê hoje. E ela é a consequência, a ponta final do discurso penal. Legisladores determinam quais são os crimes em determinado Estado, classificando-os em um sistema de leis criminais. O Estado utiliza o processo judicial criminal para condenar as pessoas acusadas do crime, enviando-as para cumprirem pena em uma prisão. Até temos investido em penas alternativas, mas estupro é punido com a pena de prisão por ser considerado um ato fortemente reprovável pelo Estado (se alguém vier defender a implementação da castração química, leia no mínimo este post)

Diversos pensadores e criminólogos, homens e mulheres, são contra a prisão. Falam que não recupera ninguém (no que concordo), que seu objetivo inicial era domesticar mão-de-obra para as fábricas (concordo novamente), que o modelo atual produz mais violência (também concordo). No entanto, é o que temos. Precisamos é aprender a utilizá-la para todas as pessoas, e não para legitimar um sistema mantém uma certa ordem social bastante excludente, que mantém longe do processo criminal e da prisão os homens brancos, heterossexuais e ricos. Portanto, a discussão sobre a prisão passa, necessariamente, pelo discurso criminalizante, que é o responsável pelo envio (ou pela recusa de envio) de determinados grupos sociais à prisão.

A história dos direitos das mulheres mostra que ainda brigamos para ter visibilidade, para que a lei seja realmente aplicada quando a mulher é vítima de um crime. A Lei Maria da Penha só existe porque o judiciário se recusava (e ainda se recusa) a reconhecer o crime de lesões corporais quando cometido pelo companheiro. Uma vítima de estupro era julgada, precisando provar que sua conduta não havia dado motivos para o ataque, e que havia reagido ao agressor com todas as forças e meios possíveis. Nota-se que a lei está sendo aplicada de forma seletiva, criticando a vítima para proteger a reputação do agressor, especialmente o para que ele não seja processado e/ou condenado pelos crimes cometidos.

No entanto, existem muitas pessoas (inclusive juristas) não enxergam essa seletividade de gênero, ou a desprezam. Acreditam que a prisão é um excesso, que deve ser modificada pra algo melhor, mais positivo, menos agressivo, e que não deve ser aplicada, ou deve ser aplicada apenas em alguns casos. Porém, na maioria das vezes, esse pensamento só é divulgado quando as vítimas dos crimes pertencem a certos grupos: se uma mulher é vítima de um crime, logo aparece alguém pra dizer que o agressor não deve ser nem processado nem preso; se uma pessoa é espancada por ser homossexual, dizem que não foi nada tão grave assim para justificar a prisão; idem se a vítima é uma pessoa negra.

Quando agem assim, estão jogando fora conquistas históricas, mantendo o sistema de dominação e reforçando o discurso que não reconhece mulheres como sujeitos de direito: “mulheres são tão inferiores que não merecem a tutela do Estado”, o “Estado é para defender os interesses de homens, brancos, heterossexuais, ricos”. Normalmente o discurso anti-prisional só atinge o último item, que versa sobre poder aquisitivo, punindo os pobres, e as críticas têm toda razão nesse ponto. Mas há ainda outros pontos que precisam ficar visíveis, especialmente o de gênero, para que o direito penal não seja aplicado de forma a aumentar a discriminação ou não reconhecer mulheres como sujeitos que merecem proteção do Estado.

Há quem diga que mulheres devem ser benevolentes, perdoar os agressores, e procurar outras formas de resolver o problema (como se o problema fosse exclusivo delas, e não uma questão que foi encampada pelo Estado!) Ao insistir que as mulheres vítimas de crimes abram mão de seus direitos porque o direito penal é excludente e injusto por natureza, estão esvaziando a luta política das mulheres, permitindo que elas sejam oficialmente tratadas pelo Estado como sub-cidadãs. Agem como se os crimes cometidos contra mulheres fossem menores e o Estado devesse ignorá-los. Obviamente, trata-se de uma distorção grosseira e inadmissível do princípio da igualdade, e que, infelizmente, ainda é corriqueira. Toda a luta feminista é exatamente para denunciar, exibir e corrigir essa distorção, proporcionando às mulheres uma proteção estatal efetiva. Dizem que mulheres vítimas de crimes não devem recorrer ao direito penal significa reforçar a omissão do Estado.

O que podemos fazer hoje é lutar para o processo ser rápido, para que se respeitem as garantias constitucionais, para que a vítima seja tratada com respeito, e que o acusado não tenha sua defesa cerceada. Discutir se a prisão se aplica ou não ao caso é uma forma de desviar o assunto do ponto mais importante: quem comete um crime deve ser julgado e punido de acordo com as leis existentes hoje, que são válidas inclusive quando a vítima é mulher. Criticar a aplicação do direito penal quando a vítima é mulher só reforça a histórica invisibilidade e afasta a já escassa proteção do Estado às mulheres.