Já comentei antes o grande problema de estudar teoria feminista no Brasil: os livros são antigos e têm apenas uma edição. Buscas em sebos e bibliotecas revelam exemplares mal cuidados e, por vezes, ilegíveis. Poucos livros foram digitalizados e estão online. Por isso, perdemos muito da história dos movimentos sociais, especialmente do movimento de mulheres na metade final do século XX.
A história do movimento feminista é interessante porque foi um movimento que se desenvolveu como alternativa à hierarquização típica dos ambientes públicos, dominados pelos homens. Pequenos grupos de mulheres se reuniam em suas casas para falar dos mais diversos assuntos, e um dia acabaram por se organizar para mudar a legislação, combater a carestia e a ditadura, e lutar por seus direitos. Criavam redes, ampliavam espaços alternativos, não tinham uma pauta fixa, mas variável, improvisada à medida que as demandas surgiam.
“seguindo os mais estritos cânones do modelo de grupo de reflexão, não havia nenhuma formalização de organização interna, as reuniões centravam-se em temas pré-escolhidos, mas não havia pauta, nem exposição preparada, nem lição de casa, discutia-se tudo: de Virginia Woolf e Anaïs Nin a doenças venéreas, embora tenham demorado um pouco pra falar de sexualidade […] Havia o lado terapia sem guru, nem terapeuta, de terapia autogestionada para mulheres que no espaço competente eram analisadas por especialistas” Resumo das atividades de grupos feministas feito por Albertina Costa
“[…]era lindíssimo você ver então pessoas que nunca na vida tiham falado em público, nunca tinham dado uma aula, nunca tinham realmente se manifestado como seres humanos e que de repente começavam a falar […] Havia temas que me interessavam mais, temas que me interessavam menos, mas o que me interessava fundamentalmente era ver como nós éramos parecidas; era a gente ver como a nossa dor, enfim como a nossa… como o nosso inconsciente tinha sido forjado da mesma maneira. Idades inteiramente disparatadas, formações inteiramente disparatadas e aquele negócio sagrado, aquela hora era uma vez por semana… eu acho que se fosse toda a noite haveria gente toda a noite, porque o importante era aquele encontro”. Depoimento de Maricota da Silva a Anette Goldberg em 1987
Trechos retirados do livro: PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. p. 50 e 53.
O problema de não termos acesso à história do movimento feminista é que ignoramos essas práticas. Quando trabalhei com mediação, desconfiei que a lógica das discussões de grupo era semelhante à do movimento feminista das décadas de 60 e 70, mas na época não tinha como confirmar isso (depois soube que a fundadora do grupo havia sido militante feminista). Quando li a metodologia utilizada pelos blogcamps, fiquei encantada por reconhecer que são técnicas já utilizadas pelas mulheres há muito tempo, só que agora ocupam espaços públicos, ao invés de estarem restritas a discussões ao pé do fogão. É por isso que tenho certeza que, no Luluzinha camp, essa metodologia também será perfeita.
Mas tenho de admitir: se não conhecesse um mínimo de teoria feminista, veria o Luluzinha camp apenas como um encontro de mulheres sem hierarquia ou pauta fixa, uma versão feminina de encontros mistos. Com a teoria, minha visão se ampliou, e estou fascinada por ver a discussão típica da história feminina se realizar em um espaço público: vamos nos reunir para conversar, para nos identificarmos com o cotidiano e os gostos de outras mulheres, fazer amizades, tecer redes e, quem sabe, traçar projetos comuns. Mal posso esperar pelo fim de semana, estou curiosíssima pra ver essa dinâmica em ação.
Ai que vontade de ir! Agora mais ainda viu? Beijos e aproveita.
[…] nosso sistema de encontro é o mesmo dos blogcamps, e consiste em uma variação de umatécnica feminista antiga: ou seja, temos um espaço sem hierarquia para todas as participantes sugerirem e desenvolverem […]