Existe uma coisa que eu sempre comento com amigas/os e alunas/os: mulheres são tão seres de segunda categoria em nossa sociedade que são tratadas como propriedade de um homem o tempo todo.

Em nossa cultura, como até 50 anos atrás as mulheres estavam juridicamente vinculadas ao pai ou ao marido, era nítida a questão da mulher como propriedade masculina. Não só o direito consagrava tal status, mas também as religiões, e as convenções sociais.

A lei mudou (hoje vige a igualdade jurídica entre homens e mulheres), mas as questões culturais e religiosas continuam presas aos moldes antigos, mantendo uma espécie de acordo tácito: mulheres são propriedade de um homem, e um homem de respeito não deve se meter na propriedade alheia.

Pra isso, é necessário um código que defina a propriedade. Alianças de casamento (que só recentemente passaram a ser usadas por homens também), tratamento cerimonioso com colegas do sexo feminino que sabidamente sejam casadas ou comprometidas, “brincadeiras” sobre a necessidade de vigilância constante das mulheres casadas para que não pulem a cerca, e roupas e atitudes desejáveis para cada estado civil.

O controle sobre as roupas é o mais sutil, e parece estar meio em desuso, mas ainda é efetivo. Uma mulher casada/comprometida não deve se vestir como uma solteira, pois em tese já tem dono e não está mais “à caça” de homens. Portanto, deve parar de usar decotes, maquiagem e roupas chamativas (quantas brigas e violências são causadas porque o rapaz não quer que a namorada saia com determinada roupa?) Uma mulher que use roupas “curtas e provocativas” não é “mulher de família”, e por isso não serve para casar, além de estar “pedindo” para ser assediada ou estuprada (por incrível que pareça, essa aberração ainda é ouvida inclusive em faculdades de Direito!) Uma viúva que usa roupas coloridas está desrespeitando o falecido. Uma mulher que pertença a uma religião que a considere inferior ao homem deve dar mostras de sua submissão, seja através da “modéstia”, ausência de “vaidade”, ou do uso de roupas específicas, como a burca.

Nessa perspectiva altamente controladora do corpo e da imagem das mulheres, usar uma burca é uma forma de deixar claro que a mulher tem dono. Ela não tem identidade visual, nem aparência definida. É apenas alguém inferior a um homem, e que lhe deve obediência e respeito. Sua incursão no espaço público é tão exótica que precisa ser estigmatizada, para lembrar àquela mulher que sua cultura diz que seu lugar na sociedade é apenas no espaço privado, obedecendo a um homem, além de lembrar aos outros homens que ela tem dono, estando interditada para eles.

É por isso que dou toda razão a Nicolas Sarkozy quando ele afirma que a burca “reduz a mulher à servidão e ameaça a sua dignidade“. Em jogos de poder, roupas não são apenas um pano cobrindo e protegendo o corpo, mas um sinal claro de status social.

Ah, irão falar em liberdade de escolha. Que liberdade de escolha tem uma pessoa que, desde a infância, aprende que deve se portar e vestir de determinadas formas para reforçar sua feminilidade/condição social e obter respeito das demais pessoas? E todos no espaço público reforçam essa mensagem afirmando que é assim que tem de ser, por respeito a uma questão cultural ou religiosa? Como essa pessoa será livre pra escolher se a pressão que ela sofre é para se submeter a essas regras, ou, como alternativa, ser acusada de desonrar a família e até ser morta por isso?

Não cabe a um Estado Democrático permitir que esses micropoderes se perpetuem, reforçando desigualdades entre homens e mulheres. E não cabe desviar a questão para a liberdade religiosa, pois aqui a religião atua como uma desculpa para legitimar um sistema de dominação que se pretende ser superior ao Estado. Um Estado laico realmente digno desse nome não pode permitir que, sob o pretexto de liberdade religiosa, seja mantido todo um sistema de opressão a mulheres, transformando-as em sub-cidadãs que precisam, a cada passo, se lembrar e propagandear que são propriedade masculina e que não têm autonomia sequer para se vestir de forma diferente da que lhes foi imposta pela família ou pela religião.

Atualização em 05/07/09: pessoal, li todos os comentários, mas não tenho a menor condição de respondê-los um a um. Vou acrescentar apenas algo que julgo importante pra entenderem o meu ponto de vista:

Não concordo com a idéia de que liberdade religiosa/cultural seja absoluta. Se é pra sobrepor religião ao Estado, então cada grupo fica com a sua religião, volta pra sua tribo, e desiste de criar um Estado que atenda a todas as necessidades – e à diversidade – de seus cidadãos e cidadãs. Nessa lógica, não cabe a um Estado se subordinar a uma religião, colocando-a como tendo tanto poder, ou até mais, que ele.

O que me parece é que é difícil aplicar essas questões quando estamos falando de uma minoria política altamente discriminada, como é o caso das mulheres: religião e cultura dizem que elas são inferiores, e o direito, até pouco tempo atrás, concordava, legitimando esse discurso ao vincular a vida das mulheres à autorização do pai ou marido. Mesmo hoje, quando temos igualdade jurídica, há uma pressão social para impedir que exista igualdade de fato. Não há como negar que a aparência faz parte desse jogo de poder, como ficou nítido no dia em que a ministra Carmen Lúcia foi de calça comprida ao STF.

Nessas horas é que acho importante destacar qual deve ser o papel do Estado:

  • Se o Estado optar por defender religião/cultura, estará diminuindo sua importância e criando duas categorias de mulheres: as que estão submetidas apenas ao Estado, e as que têm de se subordinar primeiro a um grupo religioso/cultural e, em seguida, adequar essa cultura às leis do Estado; assim, sua cidadania é diminuída e sua liberdade não é a mesma das demais mulheres
  • Se o Estado optar por se omitir, estará agindo da mesma forma que aquela campanha fatídica da OAB: a mulher tem de ser a super-heroína pra se rebelar contra a família, e ainda brigar no espaço público sem receber apoio algum, já que o Estado faz de conta que ela não tem necessidades específicas a serem sanadas e a ignora; pelo contrário, faz parecer que a luta dela é individual e que, como seria moralmente errado ela ir contra a própria família/cultura/religião, ela tem de correr todos os riscos sozinha
  • Se o Estado optar por se manifestar, proibindo vestimentas opressivas, estará apoiando as mulheres que querem se libertar dessas vestes, mas não têm poder de convencimento suficiente ainda, visto que estão em processo de autonomia e libertação. O poder de coerção do Estado é fundamental para modificar a situação das mulheres, amparando-as nessas mudanças

Eu sei que a situação é bem mais delicada, que há o risco de cárcere privado, que há o risco de acreditarem em islamofobia, e ainda há quem acredite que a burca protege contra a pressão ocidental por aparência jovem e eterna. Parte desses argumentos são sérios (como o cárcere privado), parte são ilusão ou inocência (a questão estética), e parte pode muito bem ser usada pra insuflar políticos mais radicais, desviando o foco (falar apenas de islamofobia e respeito à religião – qualquer que seja a religião! – mascara e legitima a misoginia professada por aquela cultura/religião).

Apesar dessas questões, acredito que a única forma das mulheres se livrarem de roupas opressivas é o Estado apoiá-las firmemente, proporcionando uma mudança cultural na qual elas sejam livres para ter uma vida pública idêntica à das mulheres de outros grupos sociais, sem correrem o risco de serem mortas ou serem consideradas indignas e sub-cidadãs. O papel do Estado é protegê-las, quebrando o sistema de opressão.