Convite do Cfemea e Inesc fez com que eu, Renata Lima e Camilla Magalhães fôssemos a Brasília na última terça-feira para acompanhar a audiência pública na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado [resumo | vídeo]. A audiência versou sobre os objetivos e as iniciativas propostas pelo governo federal para a política de segurança pública no âmbito do Plano Plurianual (PPA 2012-2015) e os recursos previstos para essa área contidos no Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2012.

Segundo o assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e integrante do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) Alexandre Ciconello, as verbas destinadas para a segurança pública na proposta de orçamento federal de 2012 diminuíram 12% (de R$ 9,6 bilhões para R$ 8,4 bilhões) em relação a este ano. Além disso, os recursos previstos para as políticas de direitos humanos, igualdade racial e benefícios para as mulheres caíram 40% (de R$ 2 bilhões para R$ 1,2 bilhões) – isso tendo em vista que as despesas gerais da proposta de orçamento de 2012 subiram, em média, 10,8%. “Num momento em que o combate à violência é um tema tão importante da agenda nacional, é preocupante essa diminuição de verbas. O governo precisa se explicar”, disse Ciconello.

Porém, o governo não se explicou. Convidado, o ministro da Justiça não compareceu nem enviou representante. Diversas pessoas com quem conversei reclamaram das dificuldades em se ter um mínimo de diálogo com o Executivo para a construção conjunta de propostas.

Além da falta de transparência e de diálogo, há também a total ausência de avaliação das políticas atuais: não se sabe sequer se foram avaliadas, se estão bem avaliadas, ou quais seriam os passos para melhorarem. E me chamou a atenção, durante a palestra de Guacira de Oliveira (Cfemea), a menção a informações incompletas no planejamento. Estou falando de questões metodológicas, como metas genéricas, sem indicadores ou quantificação. Ampliar número de presídios, por exemplo. Mas… ampliar quanto? E qual o orçamento previsto? Para um governo que tem orgulho de ser técnico, é bem chato identificar esses deslizes.

As falhas metodológicas, aliadas a redução no orçamento que envolvem direitos humanos deixaram bem claro pra mim que votei em um governo de esquerda, mas estou recebendo um governo de direita, pouco preocupado com questões de direitos humanos, inclusive em relação aos direitos das mulheres.

E, com esse esvaziamento do orçamento e dos programas, cada vez mais aumenta a sensação de que há fundamento nos boatos sobre uma possível fusão das Secretarias Especiais (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos) em um único ministério. Isso é lamentável, pois invisibiliza lutas específicas. E não há como melhorar a situação das mulheres nem acabar com o racismo e a violência se não houve investimento e visibilidade para programas que atuem para acabar com esses tipos específicos de discriminação.

Cartaz criado por Elsa Nielsen (Islandia): Por favor, não nos tratem como lixo

Justiça x segurança pública

Um ponto que me incomodou bastante foi a menção à criação de um Ministério de Segurança Pública. Particularmente, tenho horror a esses termos. Segurança pública significa simplesmente a preservação da ordem pública por meio de atuação policial (ver art. 144 da Constituição), enquanto que a ideia de justiça (e de um ministério ou secretaria de justiça) vai além, abarcando ideais de igualdade, segurança e respeito a todos os seres humanos, políticas de combate a discriminação, sendo a repressão policial apenas um dos eixos possíveis de atuação.

Reduzir justiça a segurança pública reforça apenas o discurso repressor, se afastando da discussão sobre o processo de criminalização que age de forma seletiva para punir e discriminar grupos específicos (não só os clássicos 3Ps: puta, preto e pobre, mas também, por omissão, homossexuais, jovens e mulheres – vide feminicídio). Em um governo de esquerda não se deveria jamais reduzir a questão criminal ao aparato policial e preservação de um sistema que mantém discriminação.

Redução de homicídios: impasse no governo federal

Outro ponto controverso foi quando Alexandre Ciconello comentou que a presidenta Dilma tem se recusado a discutir a atuação do governo federal para diminuir homicídios, sob a alegação de que se trata de competência dos estados. Trata-se de um argumento absurdo, que demonstra não só uma total ignorância a respeito do índice de homicídios para políticas de segurança pública, mas também um desconhecimento da Constituição e da complexidade nas causas de homicídios.

Cartaz criado por Ralph Burkhardt (Alemanha) para conscientizar sobre a violência contra mulheres

O índice de homicídios é a base para toda e qualquer discussão sobre segurança pública. Pode não ser o melhor indicador do grau de violência (até porque é passível de distorções), mas ainda assim é utilizado para realizar estudos comparativos sobre violência em todo o mundo. Nesses estudos, o Brasil ocupa sempre os primeiros lugares como um dos países mais violentos do mundo, com cerca de 25 mortes por 100mil habitantes. Porém, se o recorte for por idade, a taxa de morte de jovens (15-24 anos) é de 50 para 100mil. Destes, a grande maioria são pessoas negras.

Embora investigação e punição dos crimes de homicídio sejam competência dos estados, é competência da União (art. 21, IX, da Constituição) elaborar e executar planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social (parece que só se lembram dos planos econômicos e se esquecem do social que deveria marcar um governo de esquerda). Além disso, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, X, da Constituição) combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

Homicídios refletem os fatores de marginalização da sociedade brasileira, e mostram graves problemas sociais, como a falta de autonomia de mulheres (que não podem sequer decidir sobre sua vida amorosa), o descaso pela morte de jovens e pobres, o altíssimo índice de violência sofrido por pessoas negras e o racismo institucional, para ficar só nos mais comuns.

Portanto, a presidenta, ao desprezar a obrigação da União em agir para diminuir o alto índice de homicídios no Brasil, está agindo de forma extremamente e equivocada. O problema é que esse equívoco tem um preço alto: os índices de homicídios estão aumentando, enquanto a resposta do governo tem sido cortar políticas públicas e lavar as mãos, transferindo a responsabilidade para os estados.

Especialmente em um governo de esquerda, que deveria estar preocupado com a valorização dos direitos humanos, é importante que a União tome a iniciativa de estimular políticas públicas de desenvolvimento social, que combatam a discriminação que leva à marginalização e aos homicídios. Ignorar o tema ao interpretar a lei de forma mesquinha, contrariando a Constituição, não ajudará o Brasil a sair da pobreza e da violência.

Nicole Robinson-Jans (Francia): Mais de 70% das mulheres tem alguma experiência de violência em suas vidas. Isso é intolerável.

Violência contra mulher: perspectivas futuras

É muito desagradável constatar que o governo da primeira presidenta NÃO é um governo para as mulheres. E que, com as propostas de orçamento apresentadas, apesar dos esforços da Secretaria de Políticas para Mulheres e da pressão de organizações feministas, nos próximos anos o governo continuará não sendo um governo para mulheres. E será um governo agindo como a direita, usando a área de segurança pública apenas para reprimir e afastar grupos indesejáveis (negros, pobres, etc) de áreas de grandes eventos (leia-se Copa do Mundo e Olimpíadas – nesse sentido, tem ainda a observação do Alexandre Ciconello sobre a política de combate a drogas focada em repressão e em tratamento terapêutico realizado por instituições religiosas – não solucionando o problema e ainda cometendo uma violação absurda do Estado laico).

Neste 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, nós precisamos nos lembrar que as mulheres só terão autonomia e serão livres se o Estado for laico, e se houver políticas públicas para combater todo tipo de discriminação, especialmente a de gênero.

Precisamos nos mobilizar para exigir do poder Executivo que atue como um governo de esquerda, lutando contra a marginalização e protegendo direitos fundamentais. Não é reduzindo o orçamento de políticas específicas para as mulheres que se vai erradicar a violência.

Para saber mais:

Este post faz dos cinco dias de ativismo online pelo fim da violência contra mulher e da blogagem coletiva das Blogueiras Feministas.

Os cartazes de Elsa Nielsen, Ralph Burkhardt e Nicole Robinson-Jans fazem parte de um concurso de cartazes para conscientizar sobre a violência contra mulheres. Neste link há várias informações sobre o concurso e sobre violência contra mulheres, e neste link podem ser vistos alguns dos cartazes que participaram do concurso.