O filme Sufragistas (Suffragette, 2015) tem como grande mérito contar um pouco da história dos direitos das mulheres inglesas. Não é um documentário. Sua perspectiva ficcional omitiu algumas questões bastante importantes. Mesmo assim tem seu valor ao mostrar para as pessoas que até pouco tempo atrás a vida das mulheres (especialmente as inglesas) era muito, muito pior, do que hoje e seus direitos eram bastante limitados. Vou pontuar algumas dessas questões.

Aviso: este post contém spoilers do filme.

Subordinação feminina

Existem lutas feministas que não recebem tanto destaque por serem negociações legislativas longas e pouco emocionantes, como o direito à guarda dos filhos e ao divórcio, o fim do instituto da autorização marital e da figura do chefe de família. Quando vou falar sobre essas lutas costumo ouvir que não são importantes porque só seriam válidas para mulheres ricas. É um raciocínio equivocado, pois a legislação instituindo a subordinação feminina vale para todas as mulheres, não importa se ricas ou pobres, casadas ou solteiras, jovens ou idosas.

Capa de Suffragette, jornal de divulgação da WSPU. Fonte: Museum of London

Capa de Suffragette, jornal de divulgação da WSPU. Fonte: Museum of London

O filme mostra que mesmo mulheres pobres, como a lavadeira Maud Watts, sofrem os efeitos da legislação que impõe a subordinação feminina: o marido fica com todo o salário dela, ele a expulsa de casa sem partilha de bens e sem direito de ver o filho, ele entrega o menino para adoção sem a autorização dela.

Hoje nem Inglaterra nem Brasil têm legislação que trata mulher como subordinada ao marido, e essa mudança só ocorreu por causa de reivindicações feministas. Não reconhecer ou minimizar essas lutas vitoriosas é omitir parte importante da história das mulheres.

Sufragistas x suffragettes

A luta pelo direito de voto feminino está no imaginário popular como a primeira reivindicação feminista, e boa parte de sua fama se deve às suffragettes. Porém elas não foram a única força feminista em ação pelo direito de voto. Quem defendia o direito de voto para mulheres era chamada (ou chamado) de sufragista (suffragist). Por décadas as feministas inglesas estiveram focadas em discussões com autoridades políticas e legisladores, a começar pelo notório apoio de John Stuart Mill em meados do século XIX. A organização mais influente no fim do século XIX era a NUWSS (National Union of Women’s Suffrage Societies), liderada por Millicent Fawcett.

Jogo de tabuleiro. O objetivo é fazer a suffragette entrar no Parlamento. Fonte: Museum of London

Jogo de tabuleiro. O objetivo é fazer a suffragette entrar no Parlamento. Fonte: Museum of London

Em 1903 houve uma ruptura na NUWSS. Emmeline Pankhurst e suas filhas Christabel e Sylvia fundaram a WSPU (Women’s Social and Political Union). Eram chamadas de suffragettes, e não de sufragistas. Aqui temos um problema com a tradução do nome do filme, pois sufragista se refere às militantes que não pertenciam à WSPU, enquanto que o filme é sobre a militância da WSPU. O grande diferencial está no estilo de militância, pois a WSPU se notabilizou por ir além do lobby e mobilizar a opinião pública através de ações violentas, passeatas, greve de fome e bom uso da mídia.

Suffragettes na mídia

O início do século XX foi um período de massificação das comunicações e uso de fotografias em jornais. As suffragettes exploraram muito bem essas inovações tecnológicas. O filme é frágil nesse aspecto, apontando apenas as novas tecnologias sendo usadas pelo Estado para identificar e perseguir opositoras.

Condecoração da suffragette Leonora Tyson por ter feito greve de fome. Fonte: Museum of London

Condecoração da suffragette Leonora Tyson por ter feito greve de fome. Fonte: Museum of London

As suffragettes organizavam passeatas, faziam comícios em locais proibidos, editavam jornal próprio, e revertiam a seu favor o tratamento truculento que recebiam do Estado. Condecoravam as militantes presas, denunciavam as prisões ilegais e violência policial, bem como alimentação forçada nos casos de greve de fome e a legislação que limitava o direito de manifestação. Padronizaram as passeatas usando faixas coloridas em verde, branco e roxo. Os discursos e aparições públicas de Christabel e de Emmeline Pankhurst eram cuidadosamente preparados para causar o máximo de impacto e repercussão, inclusive com forças de segurança femininas treinadas para proteger as Pankhurst da violência policial.

Esse bom uso da mídia realmente fez com que houvesse maior atenção da opinião pública sobre a reivindicação do direito de voto para mulheres e o absurdo da violência estatal contra elas. Aproveitando a boa repercussão, intensificaram suas práticas. A WSPU patrocinou (ou fez vistas grossas) para bombas na casa de parlamentares contrários ao direito de voto para mulheres, destruição de vitrines e janelas, várias tentativas de incêndio (inclusive de um teatro lotado), incêndio de prédios abandonados, destruição de um quadro da National Gallery, bombas em caixas de correio ou corte de cabos de telégrafo para interromper comunicações.

O resultado foi o repúdio da opinião pública, e também rupturas dentro da própria organização. O repúdio não foi só local: a luta sufragista nos demais países (inclusive no Brasil) fez questão de se afastar das suffragettes, não endossando sua atuação nem repetindo suas ações violentas.

O caso Emily Davison

A militante Emily Davison participou de diversas ações violentas da WSPU, passando também pelo processo de prisões, greves de fome e alimentação forçada. É lembrada por ter se jogado na frente do cavalo do rei no Epsom Derby, em 1913. Temos o registro desse momento em vídeo:

Não há indícios de que Davison agiu em nome da WSPU. Também não há indícios que se tratava de um suicídio planejado. A julgar pela quantidade de selos e papeis de carta que estavam com ela, supõe-se que Davison havia planejado divulgar a causa sufragista via cartas que escreveria enquanto estivesse se recuperando no hospital. Não foi isso que aconteceu: após ser atropelada pelo cavalo, Emily Davison ficou inconsciente e morreu alguns dias depois (sempre lembro dela quando dizem que o feminismo nunca matou ninguém). A WSPU patrocinou o funeral, que recebeu ampla divulgação na mídia e foi acompanhado por milhares de pessoas.

E aí veio a Primeira Guerra… e o direito ao voto feminino também

O filme omite o que aconteceu após o início da Primeira Guerra e faz parecer que a WSPU continuou lutando até obter o direito de voto parcial para mulheres em 1916. Essa é uma impressão completamente errada.

Após o início da Primeira Guerra Mundial a WSPU nunca mais reivindicou direito de voto feminino ou qualquer outro direito para mulheres. Emmeline e Christabel Pankhurst se tornaram patriotas, utilizando a estrutura da WSPU para mobilizar soldados, endossar esforços de guerra e combater pacifistas. Elas se opuseram às suffragettes pacifistas e socialistas, abandonando tanto o socialismo quanto a causa sufragista.

A oposição ao voto feminino teve de arrefecer ao perceber que as intensas migrações, mortes e mudanças sociais alteraram o cenário previsto para eleições. Ou a legislação eleitoral mudava, inclusive incluindo mulheres como eleitoras, ou não haveria eleições. O direito de voto (parcial) foi conquistado em 1918. O voto para todas as mulheres foi conquistado em 1928.

Broche esmaltado criado pela artista Ernestine Mills para ajudar na arrecadação de fundos para as suffragettes. Fonte: Museum of London

Broche esmaltado criado pela artista Ernestine Mills para ajudar na arrecadação de fundos para as suffragettes. Fonte: Museum of London

Existe uma tendência de atribuir a conquista do direito de voto só às suffragettes porque elas se tornaram a face mais visível do movimento pelo voto feminino. Mas foi necessária uma série de fatores para que o direito fosse conquistado. As negociações parlamentares feita por sufragistas constitucionalistas ao longo de décadas foram fundamentais e contínuas – permanecendo inclusive nos períodos em que o destaque midiático e o tom das reivindicações estava com a WSPU. A massificação do tema feita pelas suffragettes também foi fundamental para dar visibilidade à causa. As novas tecnologias, escolarização e a Primeira Guerra mudaram costumes, o que repercutiu também nos direitos das mulheres.

Foram todos esses fatores, juntos, e mais alguns, como a dificuldade de realizar eleições nos critérios que vigiam antes da guerra, que resultaram na conquista do direito ao voto feminino. Atribuir essa conquista somente a um grupo feminista bem articulado como a WSPU pode ser bonito na ficção mas é péssimo para entendermos a complexidade de ações necessárias para conquistar direitos para mulheres.

Leia também:

  • Dois posts excelentes em português explicando o contexto do movimento sufragista retratado no filme. Expõem em detalhes as dinâmicas entre classe, gênero e política, e abordam as questões suscitadas pelo filme hoje (como imperialismo e racismo): Lições do passado, questões do presente e Sufragistas, classe, gênero e política
  • O site do British Film Institute (BFI) tem um arquivo de filmes das suffragettes. Também tem muito material do BFI no YouTube
  • No Parliament.uk há um bom resumo do processo de luta pela voto feminino
  • As imagens deste post fazem parte da The Suffragette Collection do Museum of London. O link das imagens direciona para a página específica de cada uma delas, contextualizando sua história.
  • Pra quem gosta de quadrinhos e lê em outras línguas (ainda não tem tradução para o português) um livro muito interessante é Sally Heathcote, suffragette. Conta a história de Sally, uma jovem empregada da família Pankhurst e posteriormente, militante da WSPU. Aborda a questão de classe, os conflitos entre socialistas e pacifistas, algumas das dinâmicas da WSPU, as implicações políticas. Sally é uma personagem fictícia, mas sua história está embasada em documentação de época, devidamente referenciada ao final do livro.