Não estou com tempo para fazer posts, não estou nos Estados Unidos, não voto lá, tenho pouco conhecimento de seu processo eleitoral. Mas não dá pra ficar calada apenas observando as reações às candidaturas democratas. Tenho de concordar com a Mary W, é nítido o sexismo nas críticas a Hillary. Mas as pessoas que estão dentro do processo estão tão absorvidas por ele que não percebem as sutilezas do próprio discurso.

Acho muito interessante que os jornalistas se refiram a Hillary como ex-primeira-dama, se “esquecendo” que ela é senadora. E é curioso ver várias mulheres não se sentindo representadas pela Hillary “enquanto mulher” porque ela parece ser egocêntrica, agressiva, ter sucumbido à burocracia, que são características normalmente atribuídas a homens, como se elas mesmas não tivessem a mesmíssima postura em determinados momentos de sua vida (ah, mas homens são diferentes, né? Eles podem tudo…) De certa forma, estão assumindo uma visão antiga e reducionistas das mulheres: a de que elas são naturalmente boazinhas, delicadas, ótimas esposas apoiadoras de maridos, abrindo mão de suas idéias para engrandecer o “outro”, conciliadoras e discretas, e qualquer mulher que publicamente não se pareça com tais “qualidades” é uma aberração. No fim, parece que querem votar em uma santa, e não em uma mulher de carne e osso, com todas as qualidades e defeitos possíveis, sejam eles atribuídos “naturalmente” a homens ou mulheres. Enquanto isso, a participação feminina na política está cada vez mais complicada…

A Mary W. fez um post ótimo, explicando porque ela traduziu um artigo da Gloria Steinem sobre a “questão Hillary”. Pedi autorização pra ela, e vou reproduzi-los aqui, pois tenho medo que, em algum apagamento de arquivos, a gente fique sem a visão lúcida delas.

Post da Mary W de 08/02/08:

Eu traduzi o artigo apesar do meu inglês ser bastante deficiente. Quase inexistente. Só pra deixar alguma coisa pras meninas feministas brasileiras, caso elas procurem por isso. Eu tenho medo desses fogos de artifício mesmo. Que colocam o “bem” do lado de lá. Há tempos eu não via uma ofensiva tão grande baseada em coisa nenhuma. A sensação de rolo compressor que o Obama passa. E eu leio artigos, reflito sobre as análises. E não acho o motivo. Pra dizer oh, é o cara. Mas os progressistas (sic) todos estão histéricos e tudo o que eles nos dizem é aquilo. Que eu não aguento mais repetir. – Por que Obama? – Porque a Hillary votou a favor da guerra do Iraque. E isso vai durar o tempo todo. Porque é ofensiva ideológica sexista. E quem está dentro dela não consegue mais enxergar isso. Que eles não tem um argumento. Mas o que me chama atenção sempre, quando percebo tratores. Sexistas, racistas ou homofóbicos. O que me chama a atenção é que a discussão vai e volta sem que as pessoas percebam a incoerência. Então elas começam falando sobre estruturas sociais e terminam falando sobre indivíduos. Pra mim é particularmente irritante isso no caso das mulheres. A gente tá no meio da discussão sobre o patriarcado e a pessoa introduz a vizinha. Por exemplo, a minha vizinha… Sabe gente assim? E aí a discussão sobre a Hillary tá cansando justamente aí. As pessoas fingem que estão votando com uma consciência das estruturas sociais*. E daí nos falam sobre a importância de um negro. Ou a importância de alguém mais à esquerda. E aí você dá uma fuçada. E percebe que ele não é de esquerda. Ele não tem passado nenhum nesse sentido. Ele tem passado de líder comunitário ligado a igreja. Mas nada de revolucionário a gente acha. E então as pessoas mudam de discurso. E voltam pro indivíduo. E daí falam que ele é carismático. E que consegue aglutinar jovens. E eu fico HORRORIZADA. Porque começam a achar bonito ele ser meio populista. Como a Steinem disse no artigo. Se fosse a Hillary, iam acusar de emocional demais. Nele é apenas empolgante. Mas esse vai e vem da estrutura pro indivíduo revela uma coisa interessante. Que é a dupla implicância com a nossa candidatura. Então, as pessoas fingem de novo. Elas fingem que o problema não são as mulheres mas a Hillary. E o que elas não notam é que a implicância com a Hillary está justamente no fato de que ela É a subversão da estrutura. Acabar com o patriarcado implica nisso. Mais hillarys no mundo. E parece que as pessoas estão com ojeriza em relação a essa idéia.

*estruturais sociais SEMPRE entendidas aqui como conexões e sobreposições de relações sociais. SEMPRE.

Para não ficar um post gigantexco, o artigo da Gloria Steinem publicado no New York Times, com tradução feita pela Mary W, está publicado abaixo, após o link:

Mulheres Nunca São Favoritas
Gloria Steinem
New York Times, 08 de janeiro de 2008

A mulher em questão tornou-se advogada depois de alguns anos como organizadora de comunidade, casou-se com um advogado coorporativo e é mãe de duas meninas, de 9 e 6 anos. Ela é filha de uma americana branca e deu um pai afro-descendente – pela consciência de raça que vigora no país, ela é considerada negra – ela serviu como legisladora federal por 8 anos, tornou-se uma voz inspiradora para a união nacional.

Seja honesto: você acha que esta é a biografia de alguém que deveria ser eleita para o Senado americano? E no momento seguinte, você acredita que ela seria uma candidatura viável para chefiar a mais poderosa nação do planeta?

Se você respondeu não para cada questão, você não está sozinha. Gênero é provavelmente a mais restritiva força da vida americana, tanto para quem estará na cozinha quanto para quem deverá estar na Casa Branca. Este país está despencando na lista de países que elegem mulheres e, de acordo com estudos, polariza gênero mais do que as democracias avançadas.

Eis porque as primárias de Iowa seguiram nosso pdrão histórico de transformações. Homens negros conseguiram o direito ao voto meio século antes de que mulheres de qualquer raça pudessem marcar uma cédula, e de modo geral têm ascendido a posições de poder, militares e administrativas, antes de qualquer mulher (with the possible exception of obedient family members in the latter).

Se a advogada descrita acima fosse bastante carismática e se chamasse, vamos dizer, Achola Obama ao invés de Barack Obama, seus planos teriam ido por água abaixo há muito tempo. Naturalmente, nem ela nem Hillary Clinton deveriam usar o estilo público do Sr. Obama – tampouco o de Bill Clinton – sem serem considerados emocionais demais para a austeridade de Washington.

Então por que a barreira de sexo não é levada tão a sério quanto a racial? As razões são tão difundidas quanto o ar que respiramos: porque sexismo ainda é confundido com natural como o racismo já foi; porque qualquer coisa que afete os machos parece mais séria do que aquelas que afetam “apenas” a metade feminina da raça humana; porque crianças ainda são criadas majoritariamente pelas mulheres (a parte suave) então homens tendem a sentirem-se regressando à infância quando negociam com uma mulher poderosa; porque o estereótipo racista a respeito de homens negros é tão “masculino” que alguns homens brancos encontraram aí uma afirmação da masculinidade (as long as there aren’t too many of them); e porque ainda não há uma maneira “direita” de uma mulher assumir o poder público sem ser considerada você-sabe-o-quê.

Eu não estou defendendo uma competição de quem é mais sofrido. O sistema de castas de sexo e raça são interdependentes e têm que se extirpados juntos. Por isso os senadores Clinton e Obama devem ser cuidadosos para não deixar que um debate saudável transforme-se no embate hostil que a mídia tanto adora. Ambos precisam de uma colizão das minorias para vencer a eleição geral. A abolição e o sufragismo progrediram quando estavam unidos e fragilizaram-se pela divisão; nós devemos nos lembrar disso.

Eu estou apoiando a senadora Clinto porque como o senador Obama ela tem experiência em organização comunitária, mas ela também tem mais anos no senado, um sem precedente “estágio” de oito anos na Casa Branca, não tem que provar masculinidade, e tem potencial para destampar o reservatório de talentos desse país através do exemplo dela, e agora teve coragem de quebrar as regras de “não chorar”. Eu não estou me opondo ao Sr. Obama; se ele for indicado, eu serei voluntária. De fato, se você sobrepor os votos de ambos durante os últimos dois anos, verá que eles coincidem em mais de 90% das vezes. Além disso, para arrumar a bagunça deixada pelo presidente Bush, nós podemos precisar de dois mandatos da presidente Clinton mais dois do presidente Obama.

Mas o que me preocupa é que ele parece estar unificando através da sua raça enquanto ela parece estar dividindo pelo seu sexo.

O que me preocupa é que ela é acusada de ” playing the gender card” quando intimada pelos old boy´s club, enquanto ele parece unificador quando intimado em relação aos conflituosos direitos civis.

O que me preocupa é que os machos de Iowa simulam ignorar gênero quando o candidato é homem, fazendo com que as eleitoras pareçam tendenciosas e desleais se não fizerem o mesmo.

(parágrafo excluído porque ted kennedy apoiou obama. mas os kennedys são mais machistas q família imperial. tanto q não existe umA kennedy)

O que me preocupa é que algumas mulheres, talvez as mais jovens em especial, esperam negar ou escapar do sistema de castas sexuais, assim, em Iowa, as mulheres entre 50 e 60 anos, apoiaram desproporcionalmente a senadora Clinton, provando mais uma vez que mulheres são um grupo que tende fica mais radical com a idade.

Esse país não pode arcar com as consequências de escolher nossos líderes a partir de um pool de talentos limitados por sexo, raça, herança poderosa ou diploma prestigioso. É tempo de usar o desejo de igualdade para quebrar todas as barreiras. Precisamos estar prontos para dizer: “Eu a estou apoiando porque ela será uma excelente presidente e porque ela é uma mulher”.

Gloria Steinem is a co-founder of the Women’s Media Center.