Quando vi a convocatória para uma greve internacional de mulheres no próximo 8 de março, não fiquei surpresa com o evento em si, embora considere mais interessante, tal como as islandesas, falar em “Dia de folga das mulheres“. E, apesar das origens socialistas, nas últimas décadas o dia Internacional da Mulher é uma data em que tradicionalmente são listadas as conquistas de direitos e elencados os problemas que ainda faltam ser resolvidos para melhorar a vida das mulheres.
Porém, fiquei muito surpresa com a convocatória da greve (em inglês na Viewpoint Magazine), inspirada na Women’s March contra Trump realizada em janeiro último. O blog da Boitempo publicou a tradução com o título “Para além do “Faça acontecer”: por um feminismo dos 99% e uma greve internacional militante em 8 de março”.
O título da convocatória refere-se ao livro Faça Acontecer: mulheres, trabalho e a vontade de liderar (Lean In no original em inglês), da executiva Sheryl Sandberg, publicado em 2013. No corpo do artigo, as autoras convocam a greve prometendo ações que “visam visibilizar as necessidades e aspirações que o feminismo do “faça acontecer” ignorou: as mulheres no mercado de trabalho formal, as que trabalham na esfera da reprodução social e dos cuidados e as desempregadas e precárias”
Em outras ocasiões critiquei o ativismo que elege inimigos a serem combatidos [caso Julien Blanc | “roubo” de protagonismo]. Considero que, ao eleger um inimigo, os laços feministas podem até ser fortalecidos nesse combate, mas o resultado é prejudicial, pois estão se fechando em uma seita e negando diálogo com outros grupos para efetivamente melhorar a vida das mulheres. Para piorar, ampliam a fama e abrangência do que pretendem criticar. Nas ocasiões anteriores, as críticas referiam-se a uma pessoa. Desta vez, o inimigo é um livro! E é um livro tão perigoso que a convocatória do Dia Internacional da Mulher se refere expressamente a ele como inimigo a ser combatido.
Por que o livro “faça acontecer” está sendo demonizado?

capa da edição brasileira do livro Faça Acontecer
Faça Acontecer é um livro que aborda a relação entre mulheres e mercado de trabalho, mostrando que ainda são necessárias muitas mudanças para que a igualdade de direitos e oportunidades no mercado de trabalho seja efetiva para mulheres. Embora escrito para o contexto trabalhista dos Estados Unidos (que é bem diferente do brasileiro e lá a situação é muito, muito pior para as mulheres), isso não interfere na leitura do livro, já que o foco está nas práticas cotidianas que dificultam o trabalho feminino.
O livro aponta problemas, procura soluções e vai muito além do chavão “mulheres ganham menos para fazer o mesmo trabalho”. Apresenta pesquisas sobre estereótipos de gênero que prejudicam mulheres, e apresenta também o quanto mulheres incorporam esses estereótipos, prejudicando a própria ascensão profissional. Elenca armadilhas de comportamento que fazem com que as mulheres de hoje, mesmo trabalhando em tempo integral, se dediquem mais aos filhos do que as mães de gerações anteriores (e sejam cobradas por não se dedicarem mais ainda).
Sandberg defende abertamente a educação feminina e o desenvolvimento de habilidades novas, estimula a ambição profissional (e não só ter um trabalho para pagar as contas), e a promoção de políticas para melhorar a situação das mulheres no mercado de trabalho. Incentiva mudança de comportamento na família: explica por que a mulher não deve diminuir o ritmo profissional quando pensa em se casar ou ter filhos e insiste veementemente que a escolha do parceiro, bem como a obrigatória divisão de tarefas domésticas, são fundamentais para apoio e sucesso profissional.
São temas excelentes, que merecem ser discutidos, e até auxiliar na elaboração de políticas públicas ou políticas de igualdade de gênero em empresas. Mas, para os grupos feministas que estão convocando a Greve Internacional de Mulheres, o livro é um inimigo por não se alinhar com seus posicionamentos políticos. Afinal, claramente anunciam que estão construindo “um novo movimento feminista internacional com uma agenda expandida – ao mesmo tempo anti-racista, anti-imperialista, anti-heterossexista e anti-neoliberal“.
“Faça Acontecer” é um livro com outro tipo de abordagem: procura lidar da melhor forma possível com o capitalismo para melhorar a situação das mulheres no mercado de trabalho. Como não está de acordo com a premissa anticapitalista, se torna um livro a ser demonizado e combatido. Isso vem ocorrendo desde a publicação: em 2013, a feminista bell hooks (é pseudônimo e a instrução da autora é para escrevê-lo em minúsculas) fez diversas críticas ao livro… e também às roupas de Sheryl Sandberg. Além de considerar o livro um exemplo de feminismo neoliberal e falso feminismo, bell hooks afirmou que Sandberg “usa roupas com decote sexy e profundo em formato de V e sapatos de salto stiletto; essa imagem cria a aura de feminilidade vulnerável“, em um exemplo clássico de patrulhamento tanto político quanto de aparência. Embora bell hooks não esteja listada entre as autoras da convocatória da greve atual, os argumentos são bastante semelhantes, mas desta vez não há menção ao vestuário.
Mulheres no mercado de trabalho: feminismo para 1% ou 91%?
A afirmação de que o livro “Faça Acontecer” só é útil para 1% das mulheres não procede. Para ficar apenas no caso brasileiro, dados de 2013 do Anuário das mulheres empreendedoras 2014-2015 indicam que a participação das mulheres na economia vem aumentando gradativamente na última década. A ocupação feminina se divide da seguinte forma: 73% assalariadas, 15,3% empreendedoras por conta própria, 2,5% empregadoras e 9,2% construção para uso próprio, produção para autoconsumo e trabalhadoras não remuneradas.

Distribuição da população economicamente ativa, separada por sexo e tipo de ocupação. Anuário das mulheres empreendedoras 2014-2015 Sebrae
Das 73% de mulheres assalariadas (o mercado formal que a convocatória afirma ter sido esquecido pelo “feminismo do Faça Acontecer”) parte delas quer ascender na carreira. E, com certeza, TODAS querem aumento de salário e melhores condições de trabalho. As 15,3% de empreendedoras por conta própria precisam entender como os estereótipos de gênero estão prejudicando seus negócios e ter ideias para enfrentá-los. A ascensão profissional implica em aprender a lidar com críticas injustas, pois as pessoas ainda avaliam negativamente mulheres em cargos de poder. Chavões militantes que atribuem os problemas das mulheres exclusivamente ao capitalismo e patriarcado, sem propostas concretas, não são suficientes para obter essas conquistas.
Todas essas mulheres precisam de informação para enfrentar o mercado de trabalho, e o livro “Faça Acontecer” é um ótimo ponto de partida. As mulheres consideradas pela militância como 1% na verdade correspondem a quase 91% da população feminina economicamente ativa. É um absurdo ver um livro que pode ser interessante para tantas mulheres sendo criticado apenas por não se alinhar ao feminismo anticapitalista. Empregadoras e empreendedoras são quase 20% das mulheres economicamente ativas no Brasil, e impressiona constatar que o movimento feminista simplesmente ignora sua existência e necessidades.
Então, antes de comprar a crítica ao “Faça Acontecer” e fazer parte da turma “não li e não gostei”, aproveite o “dia de folga” do 8 de março para conhecer o livro. Já que o movimento feminista insiste que este livro é um inimigo a ser combatido, e faz propaganda negativa para ele, leia e forme sua opinião. Reflita sobre o que pode ser aplicado ao seu cotidiano. Discuta o livro com seus amigos e amigas. Mesmo que você seja anticapitalista, vai ser uma leitura diferente e depois você poderá criticar os trechos que não gostar com argumentos melhor elaborados. Não perca esta oportunidade que o feminismo te sugeriu e leia o livro!
Nota final: Já faz um tempo que me afastei do movimento feminista. Continuo defendendo que feminismo não é grupo para terapia informal mas para luta por direitos para mulheres, e que, para isso, o caminho é modificar a legislação e promover políticas públicas. Quando escrevi o “Teste: você é feminista?” listei direitos que historicamente foram negados às mulheres e que hoje são percebidos como senso comum, indicando conquistas que não deveriam ser ignoradas. Continuo defendendo iniciativas como HeforShe, grupos mistos, maior diálogo com apoiadores e principalmente foco em questões jurídicas para conquistar efetivamente a igualdade de direitos e oportunidades, independente de posicionamento político ou partidário. Infelizmente, o feminismo dos dias atuais é outro, mais interessado em demonizar livros e distorcer a história de conquistas do próprio movimento. Enquanto houver história das mulheres sendo distorcida, e enquanto livros estiverem sendo demonizados, pretendo criticar esses posicionamentos feministas, como forma de contribuir para o conhecimento da história das mulheres e também promover igualdade de direitos.
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Que post incrível. Acho tão problemático não dialogar com mulheres ambiciosas no sistema capitalista.
Pois é. É muito problemático pra qualquer movimento social não dialogar com diferentes necessidades e perspectivas.
Que texto lúcido! Talvez (opinião minha), o maior problema para construir a agenda com as pautas “feministas” e engajar pessoas à causa seja o radicalismo dos que se denominam feministas. O negócio está ganhando ares de seita: o que é chato e meio ridículo.
Sim, o radicalismo é um problema pra qualquer movimento social. Mas tem outros dois fatores também. Um é a dificuldade de definir feminismo, e cada grupo puxa o conceito para suas práticas (aí um grupo diz que é o verdadeiro feminismo e que os outros são falsos, assimilados, etc, meio que parecido com religião, pois precisa de crer no ‘feminismo verdadeiro” para integrar o grupo). O outro é a forma como temos acesso à informação hoje. As redes sociais criam bolhas que não ajudam em nada: reforçam comportamento de grupo, dificultam o diálogo com outros grupos e, no fim das contas, fazem as pessoas ficarem pregando para convertidos. Nesse tipo de situação é mais fácil se tornar uma seita do que perceber que está afastando apoiadores e se distanciando do objetivo inicial. E aí, o que seria um belo movimento social se tornou um desastre para a própria causa.
Muito bom. E me chamou a atenção quando disseste que para as mulheres o contexto trabalhista dos EUA é muito pior que o brasileiro. Há algum link com dados comparativos?
Tá ok, entendi sua critica, e concordo. Mas fico numa dúvida. Essa ação, de colocar esse livro como inimigo, é uma ação do feminismo ou de uma determinada vertente ou mesmo um grupo?
Acho muito suspeito colocar o feminismo como sendo uma ‘entidade única’ e me entristece ler isso vindo de uma mulher doutoranda que tem algum conhecimento a respeito do assunto.
Existem falhas no movimento feminista atual? Sim,muitas, mas colocar as coisas da forma “o feminismo isso”, “as feministas aquilo” é bem errado.
anacranes, quem está colocando “o feminismo isso”, “as feministas aquilo” é quem está propondo a manifestação do 8 de março. Eu não inventei o título (nem em português nem em inglês), muito menos as citações. São as manifestantes que convocaram o 8 de março que se referem ao feminismo diferente do delas como falso. São elas que estão contra outros feminismos. Eu apontei esse enviesamento no artigo, e citei as fontes que estava criticando. Basta abrir os links e ler.
É muito indelicado de sua parte vir falar que meu conteúdo é “suspeito” e que te “entristece” ler o que escrevi sem sequer se dar ao trabalho de ler os artigos e ver que o problema não é comigo, é com o posicionamento delas.
Egídio, o contexto trabalhista dos EUA é ruim para mulheres, a começar por a Constituição não declarar a igualdade de gênero. Quarenta anos atrás houve uma tentativa de Emenda de Igualdade de Direitos , mas não foi ratificada. Uma das propostas da Women’s March deste ano é propor uma nova emenda de igualdade de direitos. A legislação trabalhista dos EUA é bastante focada em negociação individual, e há historicamente repúdio a sindicatos e negociações coletivas. Questões que percebemos como direitos (transporte, limitação de carga horária, refeição, creche, licença remunerada) não são a regra por lá. E os EUA são o único país desenvolvido que não tem licença maternidade remunerada. Os dados estão dispersos (e não estou podendo escanear nem linkar tudo agora) mas o Global Gender Gap é um bom ponto de partida.